sábado, 31 de março de 2018

Advogada e procuradora aposentada explica por que a prisão em segunda instância é uma violência



FOTO: INTERNET





Em artigo no Estadão, Luiza Eluf, advogada criminal, escritora e procuradora de justiça aposentada, explica a violência da prisão em segunda instância:

A polêmica gerada no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a prisão ou não de réus condenados em segundo grau merece a reflexão de todos; não apenas dos acusados, que estão com a espada sobre suas cabeças; não apenas dos juízes, que estão com a caneta nas mãos; não apenas dos jornalistas que opinam sobre tudo e sobre todos e não apenas dos advogados que militam incessantemente em todos os lados dessa polêmica. (…)

Nesse momento, pouco deve importar o fato de Lula poder ou não ser preso, pois é completamente desaconselhável decidir casuisticamente, ou seja, consagrar uma norma geral para atender a um caso concreto específico. Prender o ex-presidente para dar o bom exemplo ou para satisfazer a ânsia punitiva de muitos, ou deixá-lo em liberdade para aguardar o trânsito em julgado dos processos contra si instaurados, conforme determinam o Código de Processo Penal e a Constituição Federal, essa é uma questão que está posta, mas não é a única que importa. É grande a quantidade de pessoas na mesma situação, espalhadas pelo país.

Diante da revolta social causada por numerosas denúncias de malversação do dinheiro público, a população vem gritando por Justiça, com contundentes apelos à punição severa dos culpados. Tal situação é perfeitamente compreensível, mas a Justiça tem que analisar as provas com cautela para evitar precipitações e linchamentos morais, sem curvar-se às pressões. É nesse momento que o Habeas Corpus se faz necessário, pois ele não absolve ninguém, apenas evita a punição antes da certeza cabal da culpabilidade. Trata-se de instituto jurídico que tem como objetivo contrapor-se ao autoritarismo do Estado, impondo a cautela necessária quanto à privação do direito de livre locomoção de um suspeito.

O princípio da presunção de inocência vigora no Direito Pátrio desde a instauração da Democracia e foi consagrado explicitamente na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, inciso LVII, que diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Maior clareza do que a desse texto não existe. Trata-se de uma determinação e de uma garantia. Ou obedecemos a essa regra fundamental, ou perdemos os limites democráticos e instauramos uma Justiça despótica. (…)

Por sua vez, o Código de Processo Penal, seguindo os ditames da Lei Maior, determina em seu artigo 283 que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, ou no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Está evidente a cautela de nossa legislação com relação às prisões. A controvérsia que se instalou após a decisão do Supremo Tribunal Federal, tomada em 2016 por estreita maioria, que autorizou o encarceramento após decisão condenatória proferida em segundo grau, sem necessidade de trânsito em julgado, apenas demonstra que a medida do Pretório Excelso confrontou uma garantia de há muito consagrada, de forma a gerar instabilidade social e jurídica, além de grande inconformismo. Desde o momento da nova concepção adotada, a discussão não mais cessou. E, agora, vê-se a instabilidade crescer dentro do próprio STF, que já esbarra em controvérsias insuperáveis internamente.

É possível deduzir que, com essa guinada surpreendente de permitir a prisão antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, a Suprema Corte buscou superar deficiências estruturais do Poder Judiciário, especialmente em relação à morosidade na prestação da Justiça, jogando o ônus da sua própria ineficiência nas costas da sociedade, ao restringir direitos fundamentais. Trocando em miúdos, as dificuldades encontradas para fazer girar a máquina das decisões em tempo razoável desembocaram nas restrições às garantias individuais consagradas. Assim, difícil decidir sobre o que é, de fato, pior, mas ouso aqui dizer que em termos de cerceamento da liberdade de ir e vir, toda cautela é pouca.

A Constituição do Brasil, a nossa progressista Carta Magna de 1988, aquela escrita com o sangue derramado dos presos do Regime Militar, teve como escopo limitar os poderes do Estado garantindo a plena cidadania a todos, sem exceção, e instaurando a Democracia. Essa mesma Constituição, que alguns abominam e outros idolatram, embora possa ter alguns defeitos, ainda está em vigor. E ela é clara sobre o momento de se proceder à execução da pena privativa de liberdade imposta ao réu processado: após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Cabendo ao Supremo as decisões sobre todo e qualquer assunto de natureza constitucional, compete a ele manifestar-se sobre a polêmica que se instalou. A presidente Carmen Lúcia está sendo cautelosa e ponderada, o que é positivo, mas o impasse não pode se arrastar por muito tempo. É do STF que se espera seja decretado o fim da era da incerteza.

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