Revista ocorreu durante operação feita “sem objetivo”, apenas para “abaixar a bola deles”, segundo porta-voz militar; Conselho Nacional de Direitos Humanos diz que ação foi inconstitucional
Uma operação conjunta das Forças Armadas e das Polícias Civil e Militar revistou nesta terça-feira (20/2) as mochilas de crianças da comunidade Kelsons, localizada na Penha, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, sem a presença de conselheiros tutelares. O Comando Militar do Leste afirmou, em entrevista coletiva, por meio de seu porta-voz coronel Roberto Itamar, que a operação foi feita sem um objetivo, apenas para mandar um “recado” a criminosos e “abaixar a bola deles”.
A ação, vinculada ao decreto presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em apoio ao Plano Nacional de Segurança Pública, assinado em 28 de julho de 2017, não tinha oficialmente ligação com a intervenção federal anunciada na última sexta-feira pelo presidente Michel Temer (PMDB). “Não existe um objetivo a ser cumprido, é mais para coibir a criminalidade, abaixar a bola deles”, afirmou o porta-voz, pontuando ainda que mais operações semelhantes podem vir a acontecer.
Segundo um agente do conselho tutelar ouvido pela reportagem, que pediu para não ser identificado, o órgão não foi informado sobre essa operação. “Diante da lei, se as crianças não apresentam riscos, não se faz necessário a revista” disse, deixando claro que é necessário questionar quais foram os critérios utilizados pelos responsáveis.
O conselho tutelar é um órgão autônomo da administração pública que possui a atribuição de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes. Ele pode ser acionado por qualquer cidadão sempre que se perceba abuso ou situações de risco contra a criança ou o adolescente.
“Atualmente há um entendimento de que o conselho tutelar não atua em situações parecidas, mas há inclusive precedentes para uma ação conjunta. Quando houve uma série de arrastões nas praias da zona sul, exigiu-se que fosse criado um aparato mais amplo, que incluiu o conselho tutelar. Mas isso tem que ser construído com cuidado pedagógico”, afirma Marcelo Burgo, professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio.
Segundo nota da Seseg (Secretaria de Estado de Segurança), todas as 11 pessoas presas na operação eram maiores de idade, autuadas em flagrante ou em cumprimento de mandados. A secretaria afirmou à reportagem que quem deve responder pela revista das crianças é o Comando Militar do Leste.
Procurado pela Ponte, o Comando Militar do Leste não respondeu até agora.
Foto: reprodução |
Morador da Kelsons, o jornalista Anderson Gonçalves confirmou à Ponte que viu crianças em uniforme escolar tendo as mochilas revistadas enquanto se dirigiam às escolas municipais mais próximas da comunidade: a Souza Carneiro e a Presidente Eurico Dutra.
A cena de militares inspecionando mochilas foi flagrada pelo fotógrafo Léo Correa, da Associated Press, e publicada ontem na primeira página da Folha de S.Paulo. Embora o jornal não tenha achado que a revista às crianças era importante a ponto de mencioná-la no texto da reportagem, a imagem viralizou nas redes sociais.
“Se ocorresse na zona sul…”
“Não há qualquer justificativa para esse tipo de ação. Ela é desproporcional e inconstitucional”, disse à Ponte Fabiana Severo, representante da Defensoria Pública da União (DPU) e atual presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Para ela, a ação revela uma prática de racismo institucional. “É preciso chamar atenção das instituições brasileiras e da própria sociedade que está sob ameaça. Estamos à beira de uma crise sem precedentes desde a redemocratização”, afirmou.
Para Pedro Pereira, coordenador do Cedeca (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), esse tipo de revista pode se caracterizar como abuso de autoridade e um vexame ou constrangimento, segundo o artigo 232 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). “Alguns podem achar que isso é natural, mas se isso acontecesse em escola tradicional na zona sul haveria uma repercussão imensa”, compara. Em nota publicada hoje, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) também aponta a violação do ECA – no caso, do artigo 18, que proíbe submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento – e pede que “sejam evitadas situações de ameaça e violação de direito infanto-juvenil”.
Fuzileiros navais revistam morador na favela Kelsons, zona norte do Rio | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil |
“Essa atitude fere completamente o Estatuto da Criança e do Adolescente”, disse Marcelo Freixo (Psol), deputado estadual e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). Ele disse que convocou uma reunião para essa quinta-feira (23/2), conjuntamente com outros órgãos, para discutir como protegê-los nesse novo contexto de operações na cidade.
Para Yvonne Bezerra de Mello, linguista e coordenadora do projeto Uerê, referência em educação e instrução de qualidade para crianças e jovens em risco social, essa ação precisa ser denunciada ao Ministério Público. “Se você deixar isso acontecer agora, antes mesmo da intervenção efetivamente começar, é porque a situação vai ficar feia”.
O posicionamento da Comissão de Direitos Humanos da OAB é igualmente crítico à revista, pois, para o presidente da comissão, Marcelo Chalreo, ações assim repercutem nas populações pobres e periféricas. “Quando você faz isso você quer mandar um recado de terror para as famílias”, disse.
Há 11 anos, o mesmo comportamento
Em 15 de março de 2007, um caso semelhante também emergiu entre agentes de segurança e crianças. Durante uma operação na favela de Vigário Geral, policiais civis revistaram mochilas de crianças e, segundo o jornal Extra, argumentaram que um traficante estaria obrigando uma criança de 8 anos a levar sua arma na mochila.
Um dia depois, durante o plantão noturno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a ONG Projeto Legal pediu um habeas corpus proibindo a revista generalizada de crianças no Estado, que foi aceito pela desembargadora Cristina Tereza Gaulia.
No pedido, a ONG solicitava que a inspeção acontecesse apenas com “fundada suspeita” e em companhia do responsável ou de um conselheiro tutelar. “Nesse passo, a medida noticiada – a busca e apreensão de mochilas escolares trazidas por crianças ou adolescentes – viola o direito à privacidade, o que se revela mais aviltante quando estamos diante de crianças, mormente se ainda realizado por agentes fortemente armados, a intimidar menores.”
Fonte: ponte
0 comentários:
Postar um comentário