Foto: Carlos Moura/SCO/STF
É inegável a relativa hipertrofia do Judiciário na tentativa de resolver conflitos coletivos, uma vez que os demais poderes não conseguem dar conta das demandas sociais. No entanto, ele [o Judiciário] não é o melhor foro para absorver a complexidade dessas demandas, já que ele tradicionalmente funciona no modelo de conflitos individuais, em que “A” ganha e “B” perde.
Em outras palavras, o Judiciário está estruturado para lidar com conflitos retributivos, tais como nos casos penais ou de indenização civil. Se “A” causou um dano a “B” de tamanho “X”, esse dano deverá ser reparado na exata medida de “X” (nem mais, para não enriquecer alguém indevidamente; nem menos, para não deixar de reparar a vítima).
Os conflitos sociais, porém, não necessariamente são estruturados dessa forma, imperando aqui a máxima da Justiça Distributiva, de “dar a cada um o que lhe é devido”. O exemplo mais simples é o da sociedade anônima, em que cada sócio é titular de uma fração das cotas, sem que nenhum deles [sócios] possa se sobrepor aos demais. Assim, na liquidação dos dividendos, o sócio não receberá a quantia paga na compra das ações, mas a proporção de suas cotas sobre os dividendos.
Dar respostas retributivas a problemas distributivos pode criar ainda mais injustiças, ao invés de atenuá-las. Isso fica evidente em casos que envolvem o reconhecimento de direitos de minorias, em que frequentemente ministros do Supremo Tribunal Federal contrapõem interesses que não necessariamente são opostos.
Recentemente, ao analisar a ADI 5543, que busca a declaração de inconstitucionalidade da norma do Ministério da Saúde que proíbe a doação de sangue por homens gays e homens que fazem sexo com homens (HSH), essa falha de abordagem está acontecendo.
A ação tinha tudo para ser um caso simples de discriminação direta, ou seja, uma norma inconstitucional por discriminar pessoas com base em orientação sexual. Mas alguns ministros insistiram em trata-lo como um caso que conflita a igualdade devida a minorias sexuais com a defesa da saúde pública, como se a revogação da norma discriminatória implicasse em possível ameaça à saúde pública.
Essa abordagem da questão está equivocada, pois, ao aplicar uma solução retributiva a uma questão distributiva, pressupõe um perdedor e um ganhador, quando ela poderia ser resolvida com dois ganhadores: parte da comunidade LGBT, ao ser autorizada a doar sangue, deixaria de ter uma cidadania de segunda classe e, assim, seria integrada plenamente à sociedade; ao mesmo tempo, nossa democracia seria fortalecida, seja com mais doadores de sangue, seja com a mitigação de uma ordem discriminatória, sem que, para tanto, fosse colocada em risco a saúde pública. Bastaria propor que qualquer conduta de risco, seja de heterossexual ou homossexual, impedisse a doação de sangue.
Apesar dessa inadequação entre meios e fins, o descrédito persistente do Executivo e do Legislativo abre espaço para que o Judiciário desponte como o último subterfúgio para quem busca justiça. O ingresso mediante concurso público e o mito da meritocracia contribuem para a construção dessa imagem.
Mas isso não significa que o Judiciário seja mais capacitado para absorver os conflitos sociais por justiça, como apontei acima. Quando sua decisão frustra as expectativas de grupos sociais que tentam acessá-lo, fica mais clara essa distância entre julgadores e jurisdicionados.
Diferente do Legislativo e do Executivo, cuja legitimidade decorre do voto, no Judiciário quem dá a última palavra é o juiz e, uma vez esgotados os recursos previstos em lei, já não há mais a quem recorrer. Essa verticalização entre quem manda e quem obedece legitima a narrativa de uma ditadura do Judiciário: manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Thales Coimbra é pesquisador do Supremo em Pauta da FGV Direito SP.
Fonte: justificando
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