Foto: Flávio Souza Cruz / Midia NINJA
O lado bom da compreensão histórica das relações sociais é o de que o tempo não para e, portanto, aquilo que até determinado momento não se conseguia ver, diante das novas correlações que são criadas, vai se tornando claro.
Concretamente, está cada vez mais evidente que o país vivencia, em grau que vem se acentuando, um momento de ruptura democrática, com o aumento do poder do grande capital e a fragilização das instituições, incluindo a própria classe política.
Obviamente, as forças que se uniram para aproveitar do ambiente antidemocrático instaurado, inclusive para aprovar uma lei para chamar de sua, não querem que essa realidade seja revelada, mas se entregam, de forma renovada, a cada manifestação ou a cada ato.
Com efeito, o argumento de que a lei não era para reduzir direitos vai ficando pelo caminho, como revelam:
a) a edição da Portaria 1.129, de 20 de outubro de 2017, que, da noite para o dia, em uma canetada, pretendeu eliminar o conceito de trabalho em condições análogas às de escravo e inviabilizar a fiscalização estatal a respeito;
b) a declaração de surpresa – e de indignação – de um investidor internacional quando soube que os juízes estavam dispostos a obstar a retirada de direitos trabalhista; e
c) o reconhecimento de um dos maiores defensores da “reforma” de que, na sua visão, a qual embalou o advento da lei, só seria possível combater o desemprego reduzindo “um pouquinho” os direitos sociais[I].
É também revelador, tanto da lógica autoritária quanto dos propósitos a atingir pelo advento da “reforma”, o intenso assédio público que estão promovendo contra os juízes do trabalho, sob o falso fundamento de que os juízes estejam cometendo alguma ilegalidade ao dizerem que vão aplicar a lei em conformidade com a ordem jurídica.
Ora, quando promovem essa campanha midiática estão, primeiro, reconhecendo que consideram que a lei da “reforma” lhes pertence, ou seja, que foi uma lei feita para atender aos seus interesses. Segundo, estão assumindo que existe uma intenção com a aplicação da lei para além daquela da mera “modernização” da regulamentação das relações de trabalho, adaptando-as aos avanços tecnológicos. Terceiro, que as alterações feitas, ao contrário do que se disse, ferem a Constituição Federal e reduzem direitos trabalhistas; isso porque se não fosse nada disso não precisariam atacar os juízes quando estes dizem que vão preservar a efetividade das normas constitucionais.
Aliás, é bastante curiosa a posição assumida por esse segmento, pois sustenta que os juízes não podem interpretar a lei, mas, com isso, já partem de uma interpretação prévia.
Na verdade, não estão dizendo que a lei não pode ser interpretada; o que estão dizendo é que não pode ser interpretada em sentido diverso daquele que já atribuíram à lei, embora nunca cheguem, concretamente, a dizer qual seria.
De fato, sequer estão tratando do assunto em uma perspectiva efetivamente jurídica. Estão, isto sim, fazendo uma demonstração de seu poder, tentando colocar o Poder Judiciário – último bastião institucional da defesa democrática – aos seus pés.
Levando a argumentação desses assediadores a uma avaliação concreta, seria o caso de indagar quais são, afinal, os sentidos da lei dos quais estão falando?
“Modernização”, desculpem-me, é muito vago; não é uma proposição normativa! Aliás, chego mesmo a desconfiar que os assediadores, a maior parte deles, sequer leram, em seu inteiro teor, a Lei 13.467/17. Pessoas que, mesmo sem saber o que está escrito na lei, entram no embate com o propósito único de ameaçar juízes e, assim, vislumbrar um aumento de seu poder.
O portal UOL, atuando em plantão 24 horas sobre o tema, atento, claramente, aos interesses de seus anunciantes, publicou hoje (07/11) uma reportagem, com a qual tenta difundir a ideia de que a “reforma” – como se houvesse um estatuto aprofundado, coeso e bem delimitado para um novo arranjo socioeconômico nas relações de trabalho por meio da Lei 13.467/17 e não um emaranhado de normas, que é o que efetivamente representa a referida lei – está sob risco, em razão de uma suposta atuação ilegal de juízes.
A reportagem enganosa faz alusão a existência de um tal “Documento”, que teria sido expedido pela Anamatra – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, para instruir os juízes a atuarem contra a reforma.
Trata-se de uma grande mentira! A Anamatra não editou documento algum e é uma enorme irresponsabilidade um jornal de grande circulação difundir isso e alguns profissionais da área jurídica ainda repercutirem a falácia.
O que a Anamatra fez foi organizar um evento jurídico, como tantos outros, em que se debateram e se explicitaram compreensões técnicas sobre temas do Direito, compreensões estas que não são o posicionamento da instituição – que apenas organizou o evento – e sim das pessoas que dele participaram (juízes, procuradores, auditores fiscais e advogados) e se manifestaram em votação democrática.
O que há, portanto, é meramente a publicação dos Enunciados que foram aprovados. E com o que alguns não se conformam é que os sentidos atribuídos a artigos da Lei 13.467/17 não foram os sentidos que eles queriam que fossem adotados.
E vale registrar, ainda, que a Anamatra não recomenda nada a nenhum juiz, pois, enquanto entidade representativa de juízes, um dos seus primados é o respeito à independência funcional. Assim, nenhum juiz está vinculado ao teor dos Enunciados em questão.
E um dos entrevistados da reportagem do UOL veio com a seguinte intriga: “Eu não vejo essa grandeza de inconsistências na nova lei como foi apontado pela Anamatra”, como se a Anamatra, institucionalmente, tivesse feito alguma avaliação própria da lei.
O entrevistado, ao menos, reconhece que existem “problemas” na nova lei, mas com uma autoridade superior, conferida sabe-se lá por quem, considera que são apenas os “problemas” por ele vislumbrados que devem ser considerados, embora nos furte de dizer quais e quantos são.
E termina com uma contradição insuperável, aduzindo: “Na hora de julgar, o juiz deve aplicar a lei, sem ser influenciado por opiniões políticas ou pessoais. O Judiciário não questiona norma. Aplica.”
O problema é que o entrevistado certamente sabe que o que o juiz faz é aplicar o Direito e a lei é apenas uma de suas formas de expressão, sendo que a Lei 13.467/17 está longe de se constituir a completude das normas jurídicas, tratando-se, meramente, de mais uma lei dentre todas as demais que integram o Direito.
Além disso, se, como ele mesmo diz, o juiz não pode ser influenciado por ninguém, sua tentativa de influenciar a atuação dos juízes acaba sendo inócua.
A mesma reportagem indica que existe uma campanha da Confederação Nacional do Transporte – CNT, para que empresas que se sintam prejudicadas por decisão de algum juiz, que, ao seu ver, se recusar a aplicar a lei da “reforma” (seja lá o que venha a ser isso), façam uma reclamação “disciplinar” contra o juiz perante o CNJ.
O grotesco dessa situação é que não se sabe o que querem dizer quando estão falando em “aplicação da reforma”, principalmente mais quando baseiam sua indignação na aplicação estrita da lei e não apontam – porque não há, a não ser nos casos estritos de Súmulas vinculantes – uma lei que obrigue o juiz a adotar um entendimento jurídico específico, ainda mais um entendimento que afronte a Constituição Federal.
Ou seja, em nome da legalidade estão dispostos a cometer a ilegalidade de tentar punir juízes em razão do conteúdo de suas decisões.
O interessante é que ao fazerem essa apologia, os arautos da legalidade se comprometem a respeitar todas as leis – e não somente a Lei 13.467/17 –, no que se inclui, naturalmente, a Constituição Federal.
Assim, nas reclamações trabalhistas futuras, diante da comprovação do descumprimento de qualquer dispositivo legal por parte dos representados pela CNT, poderão os juízes se valer desse comprometimento público, impondo sanções corretivas e punitivas da prática ilícita, nos termos das diversas leis aplicáveis à prática (reiterada) de atos ilícitos.
É tempo, pois, do Poder Judiciário adotar uma postura de completa intolerância frente aos ilícitos trabalhistas – o que, aliás, já havia passado da hora, dadas as intensas práticas de ilicitude reiterada que se verificam na realidade brasileira.
O grave do assédio é o atentado explícito ao Estado Democrático de Direito que ele representa, mas que, ao mesmo tempo, revela, mais uma vez, o que determinados setores pretendem com a Lei nº 13.467/17: aumento de poder, para a imposição de sua vontade; o que joga por terra, também, a retórica da paridade e da boa-fé nas negociações coletivas.
O que fica demonstrado é que intentam usar os termos da lei, adotando os sentidos que pressupõem que seus dispositivos tenham, para assediar e ameaçar os trabalhadores, impondo-lhes condições de trabalho que geram sofrimento, redução de direitos e precarização da vida.
Considerando que os direitos, incluindo os consagrados na Constituição Federal, advieram de um longo processo histórico, repleto de conflitos e de lutas, podendo ser compreendidos, portanto, como conquistas sociais; ao tentarem impor ao Poder Judiciário a aplicação de uma única lei, que foi elaborada em menos de dois, passando por cima de todas as demais, não pretendem apenas reduzir direitos, almejam apagar toda a memória social e todos os avanços históricos promovidos.
Cumpre perceber que se esses setores de forma expressa e publicamente assediam juízes, ameaçam e chantageiam as instituições, tendo em mãos uma lei que atende exclusivamente aos seus interesses, o que não farão com os trabalhadores nos locais de trabalho?
Fato é que não pode mais haver dúvida de que sejam esses os propósitos e de que alguns setores estão dispostos a tudo para alcançá-los. Para concretizarem seus objetivos, inclusive, engendraram a tática de um enfrentamento explícito contra as estruturas responsáveis pela preservação da ordem constitucional e dos preceitos democráticos.
Então, cumpre deixar claro: os juízes do trabalho não se submeterão aos agressores do Estado Democrático de Direito e à vontade dos que desconsideram as conquistas históricas da cidadania e daqueles que desprezam os direitos fundamentais, liberais e sociais!
Jorge Luiz Souto Maior é Juiz do Trabalho e Professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP).
Fonte: justificando
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