sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

A Lei Maria da Penha e o Ministério Público




A implementação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) pela sociedade brasileira e pelos órgãos de Estado depende da compreensão da categoria gênero e da determinação em não compactuar com a violência de gênero. É o que discuto em um primeiro momento para, a seguir, salientar o papel do Ministério Público para fazer valer o direitos das mulheres a uma vida sem violência.

Desigualdade de gênero com o base da violência contra as mulheres

O gênero é uma noção fundamental para a correta aplicação da Lei Maria da Penha, pois esta, nos termos de seu art. 5º, incide na violência “baseada no gênero” praticada contra as mulheres no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto. Essa expressão foi adotada pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, realizada em Belém do Pará, em 1994, e pelas Nações Unidas, na Plataforma de Ação da IV Conferência Internacional da Mulher, realizada em Beijing, em 1995. Note-se que a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), adotada pelas Nações Unidas, em 1979, referia-se “a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo”.

Portanto, a palavra gênero tem um sentido próprio, que não se confunde com o de sexo. Ela leva em conta a diferenciação social, que atribui aos sexos biológicos (macho/homem e fêmea/mulher) funções separadas e geralmente hierarquizadas, caracterizadoras do que é ou deve ser masculino e do que é ou deve ser feminino. Na síntese feita por Nicole-Claude Mathieu  (2009, p. 223), o gênero se manifesta fundamentalmente “na divisão sociossexual do trabalho e dos meios de produção” e “na organização social do trabalho de procriação”.  Diferenciação da vestimenta, de comportamentos e atitudes e quaisquer outros aspectos são consequências dessa diferenciação social fundamental.

A diferenciação em si não constitui problema, mas na prática social implica desigualdade em desfavor das mulheres ou do gênero feminino.

O parágrafo 118 da Plataforma de Ação de Beijing explicita que “a violência contra a mulher é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, que têm causado a dominação da mulher pelo homem, a discriminação contra ela e a interposição de obstáculos ao seu pleno desenvolvimento”.

Por isso, o objetivo principal da Lei Maria da Penha é estabelecer comandos e procedimentos para coibir esse tipo de violência. Nesse sentido, em vários artigos se refere à necessidade de que tenhamos – família, sociedade e poder público – uma perspectiva de gênero e de raça ou etnia. Essa perspectiva não é outra senão a de igualdade, isto é, de uma divisão social entre os sexos que não coloque as mulheres em uma posição inferior ou discriminatória em razão de estereótipos sobre os papéis que desempenham na família e na sociedade. A divisão que se estabelece entre os sexos e os gêneros feminino e masculino não pode ser fonte de discriminação e violência.

Após 7 anos de aplicação da Lei Maria da Penha, parece adquirir força a ideia de que ameaças, injúrias, vias de fato e lesões corporais leves no âmbito familiar e doméstico não são infrações de menor potencial ofensivo, sendo de interesse da sociedade e do Estado buscar soluções para que não ocorram, aplicar sanções aos agressores ou impor condições para que não sejam sancionados penalmente. Todavia, continuam presentes entendimentos de que essas agressões são devidas ao uso de bebidas ou drogas ou a problemas psicológicos, seja de agressores ou das próprias vítimas. Desse modo, as soluções oferecidas, principalmente no Sistema de Justiça, medicalizam o problema. Não enfrentam o verdadeiro problema que é a internalização nas mentes e nas instituições de uma divisão desigual de papéis, direitos e deveres entre homens e mulheres.

O papel do Ministério Público

A Lei Maria da Penha identifica o Ministério Público como uma das instituições do Estado brasileiro com a obrigação de atuar no escopo da Lei, tanto na esfera judicial como na extrajudicial.  Tem a obrigação de intervir nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher; de requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social, entre outros; de fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, bem como de adotar as medidas cabíveis para sanar as irregularidades constatadas; cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Quanto à primeira obrigação, a Lei parece não ter trazido novidade, pois o Ministério Público é o titular da ação penal pública. Mesmo na ação penal de iniciativa privada, que é a regra nos crimes contra a honra, a sua intervenção é obrigatória, nos termos do Código de Processo Penal. Mas o que a Lei busca é uma intervenção qualificada, isto é, uma intervenção com a perspectiva de gênero.  Isso parece não estar acontecendo, conforme evidenciado em estudo que analisou 36 processos judiciais de homicídios de mulheres, com violência doméstica e familiar, ocorridos no Distrito Federal, entre 2006 e 2011, e julgados após a promulgação da Lei Maria da Penha. Verificou-se que em 86% dos casos o Ministério Público não pediu a agravante do art. 61, f do Código Penal (violência contra a mulher na forma da lei específica). Curiosamente, em parte dos casos, a agravante não solicitada pelo Ministério Público foi aplicada pelo juiz, pois há entendimento doutrinário de que o juiz pode fazê-lo, bastando a narrativa implícita na denúncia (SILVA, 2013). O mesmo estudo também mostrou que, em metade dos casos, na dosimetria da pena, a referida agravante é compensada com a atenuante da confissão espontânea, sendo ambas consideradas de mesmo valor em relação ao crime. Não há qualquer insurgência do Ministério Público quanto a essa compensação.

Os dois exemplos indicados revelam uma falta de intervenção do Ministério Público na perspectiva da Lei Maria da Penha, levando ao ocultamento da morte sofrida pelas mulheres como resultado de violência de gênero. Os relatos das testemunhas e dos laudos não são correlacionados com a morte delas. O processo e o julgamento seguem os mesmos padrões de qualquer ação penal por homicídio.

No tocante às causas cíveis decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher, em geral, são aquelas em que se discutem guarda de filhos e alimentos para os filhos, hipóteses em que o Ministério Público já intervinha por força do Código de Processo Civil. De acordo com a Lei Maria da Penha, essas questões deveriam ser resolvidas pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que possui competência penal e civil. Entretanto, a maioria do, Juizados declina da competência para a Vara de Família, onde o contexto de violência doméstica contra a mulher sequer é mencionado, olvidando inclusive medidas protetivas de urgência concedidas. Nos casos de guarda a violência vivenciada pela mulher e pelos filhos perde relevo em favor da manutenção da convivência familiar. Lembrar do contexto de violência é uma tarefa a ser assumida com mais vigor pelo Ministério Público, para que as decisões judiciais não reforcem a vitimização das mulheres.

A Lei Maria da Penha indica como atribuições do Ministério Público na esfera administrativa a requisição de força policial e de serviços públicos necessários à proteção de mulher em situação de violência doméstica e familiar, bem como a fiscalização das entidades criadas para o atendimento a mulheres nessa situação. Para incentivar o cumprimento dessas atribuições e uniformizar a atuação dos/as promotores/as de Justiça do país o Ministério Público Brasileiro, por meio do Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH), criado pelo Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça, possui a Comissão Permanente de Promotores da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid). Essa Comissão elaborou roteiros de visitas técnicas à Casa Abrigo e ao Centro de Referência e Atendimento à Mulher, para servir de subsídio à propositura de medidas judiciais e extrajudiciais (O ENFRENTAMENTO, 2011).

Um dos serviços públicos necessários e pouco eficientes é o da Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, em sede policial e judicial. A determinação legal de que a mulher em situação de violência doméstica e familiar seja acompanhada de advogado, em todos os atos processuais, cíveis e criminais (art. 27) não está sendo cumprida. A assistência jurídica faz uma diferença enorme para as mulheres, pois lhes dá condições de entender o processo judicial e de ficarem menos vulneráveis às argumentações utilizadas pela defesa dos agressores e mesmo de juízes/juízas e de promotores/promotoras que buscam o arquivamento em nome da preservação da família.  O cumprimento da exigência legal de assistência judiciária é um tema que deveria merecer do Ministério Público uma atenção maior.

Quanto à obrigação de cadastramento dos casos em que ocorre atuação do Ministério Público, vem sendo implementada, a partir da normativa imposta pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) de registro padronizado em sistema de toda atuação ministerial. Trata-se de ferramenta indispensável para gerar estatísticas e relatórios com vistas a orientar a política institucional nas diversas áreas de atuação. No tema específico da violência contra as mulheres pouco ainda se faz.

Do que foi exposto, concluo que o Ministério Público tem um papel relevante para assegurar a efetividade da Lei Maria da Penha. Há uma atuação eficiente de muitos/muitas promotores/promotoras de Justiça, mas persiste um déficit que acredito só será superado na medida em que a instituição também incorporar em suas estruturas, procedimentos e decisões, a perspectiva de gênero e o compromisso permanente com a igualdade de direitos.



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