A
implementação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) pela sociedade
brasileira e pelos órgãos de Estado depende da compreensão da categoria gênero
e da determinação em não compactuar com a violência de gênero. É o que discuto
em um primeiro momento para, a seguir, salientar o papel do Ministério Público
para fazer valer o direitos das mulheres a uma vida sem violência.
Desigualdade
de gênero com o base da violência contra as mulheres
O
gênero é uma noção fundamental para a correta aplicação da Lei Maria da Penha, pois
esta, nos termos de seu art. 5º, incide na violência “baseada no gênero”
praticada contra as mulheres no âmbito da unidade doméstica, da família e em
qualquer relação íntima de afeto. Essa expressão foi adotada pela Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
realizada em Belém do Pará, em 1994, e pelas Nações Unidas, na Plataforma de
Ação da IV Conferência Internacional da Mulher, realizada em Beijing, em 1995.
Note-se que a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres (CEDAW), adotada pelas Nações Unidas, em 1979, referia-se “a
distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo”.
Portanto,
a palavra gênero tem um sentido próprio, que não se confunde com o de sexo. Ela
leva em conta a diferenciação social, que atribui aos sexos biológicos
(macho/homem e fêmea/mulher) funções separadas e geralmente hierarquizadas,
caracterizadoras do que é ou deve ser masculino e do que é ou deve ser
feminino. Na síntese feita por Nicole-Claude Mathieu (2009, p. 223), o gênero se manifesta
fundamentalmente “na divisão sociossexual do trabalho e dos meios de produção”
e “na organização social do trabalho de procriação”. Diferenciação da vestimenta, de
comportamentos e atitudes e quaisquer outros aspectos são consequências dessa
diferenciação social fundamental.
A
diferenciação em si não constitui problema, mas na prática social implica
desigualdade em desfavor das mulheres ou do gênero feminino.
O
parágrafo 118 da Plataforma de Ação de Beijing explicita que “a violência
contra a mulher é uma manifestação das relações de poder historicamente
desiguais entre mulheres e homens, que têm causado a dominação da mulher pelo
homem, a discriminação contra ela e a interposição de obstáculos ao seu pleno
desenvolvimento”.
Por
isso, o objetivo principal da Lei Maria da Penha é estabelecer comandos e procedimentos
para coibir esse tipo de violência. Nesse sentido, em vários artigos se refere
à necessidade de que tenhamos – família, sociedade e poder público – uma
perspectiva de gênero e de raça ou etnia. Essa perspectiva não é outra senão a
de igualdade, isto é, de uma divisão social entre os sexos que não coloque as
mulheres em uma posição inferior ou discriminatória em razão de estereótipos
sobre os papéis que desempenham na família e na sociedade. A divisão que se
estabelece entre os sexos e os gêneros feminino e masculino não pode ser fonte
de discriminação e violência.
Após
7 anos de aplicação da Lei Maria da Penha, parece adquirir força a ideia de que
ameaças, injúrias, vias de fato e lesões corporais leves no âmbito familiar e
doméstico não são infrações de menor potencial ofensivo, sendo de interesse da
sociedade e do Estado buscar soluções para que não ocorram, aplicar sanções aos
agressores ou impor condições para que não sejam sancionados penalmente.
Todavia, continuam presentes entendimentos de que essas agressões são devidas
ao uso de bebidas ou drogas ou a problemas psicológicos, seja de agressores ou
das próprias vítimas. Desse modo, as soluções oferecidas, principalmente no
Sistema de Justiça, medicalizam o problema. Não enfrentam o verdadeiro problema
que é a internalização nas mentes e nas instituições de uma divisão desigual de
papéis, direitos e deveres entre homens e mulheres.
O
papel do Ministério Público
A
Lei Maria da Penha identifica o Ministério Público como uma das instituições do
Estado brasileiro com a obrigação de atuar no escopo da Lei, tanto na esfera
judicial como na extrajudicial. Tem a
obrigação de intervir nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência
doméstica e familiar contra a mulher; de requisitar força policial e serviços
públicos de saúde, de educação, de assistência social, entre outros; de
fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher
em situação de violência doméstica e familiar, bem como de adotar as medidas
cabíveis para sanar as irregularidades constatadas; cadastrar os casos de
violência doméstica e familiar contra a mulher.
Quanto
à primeira obrigação, a Lei parece não ter trazido novidade, pois o Ministério
Público é o titular da ação penal pública. Mesmo na ação penal de iniciativa
privada, que é a regra nos crimes contra a honra, a sua intervenção é
obrigatória, nos termos do Código de Processo Penal. Mas o que a Lei busca é
uma intervenção qualificada, isto é, uma intervenção com a perspectiva de
gênero. Isso parece não estar acontecendo,
conforme evidenciado em estudo que analisou 36 processos judiciais de
homicídios de mulheres, com violência doméstica e familiar, ocorridos no
Distrito Federal, entre 2006 e 2011, e julgados após a promulgação da Lei Maria
da Penha. Verificou-se que em 86% dos casos o Ministério Público não pediu a agravante
do art. 61, f do Código Penal (violência contra a mulher na forma da lei
específica). Curiosamente, em parte dos casos, a agravante não solicitada pelo
Ministério Público foi aplicada pelo juiz, pois há entendimento doutrinário de
que o juiz pode fazê-lo, bastando a narrativa implícita na denúncia (SILVA,
2013). O mesmo estudo também mostrou que, em metade dos casos, na dosimetria da
pena, a referida agravante é compensada com a atenuante da confissão
espontânea, sendo ambas consideradas de mesmo valor em relação ao crime. Não há
qualquer insurgência do Ministério Público quanto a essa compensação.
Os
dois exemplos indicados revelam uma falta de intervenção do Ministério Público
na perspectiva da Lei Maria da Penha, levando ao ocultamento da morte sofrida
pelas mulheres como resultado de violência de gênero. Os relatos das
testemunhas e dos laudos não são correlacionados com a morte delas. O processo
e o julgamento seguem os mesmos padrões de qualquer ação penal por homicídio.
No
tocante às causas cíveis decorrentes de violência doméstica e familiar contra a
mulher, em geral, são aquelas em que se discutem guarda de filhos e alimentos
para os filhos, hipóteses em que o Ministério Público já intervinha por força
do Código de Processo Civil. De acordo com a Lei Maria da Penha, essas questões
deveriam ser resolvidas pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher, que possui competência penal e civil. Entretanto, a maioria do,
Juizados declina da competência para a Vara de Família, onde o contexto de
violência doméstica contra a mulher sequer é mencionado, olvidando inclusive
medidas protetivas de urgência concedidas. Nos casos de guarda a violência
vivenciada pela mulher e pelos filhos perde relevo em favor da manutenção da
convivência familiar. Lembrar do contexto de violência é uma tarefa a ser
assumida com mais vigor pelo Ministério Público, para que as decisões judiciais
não reforcem a vitimização das mulheres.
A
Lei Maria da Penha indica como atribuições do Ministério Público na esfera
administrativa a requisição de força policial e de serviços públicos
necessários à proteção de mulher em situação de violência doméstica e familiar,
bem como a fiscalização das entidades criadas para o atendimento a mulheres
nessa situação. Para incentivar o cumprimento dessas atribuições e uniformizar
a atuação dos/as promotores/as de Justiça do país o Ministério Público
Brasileiro, por meio do Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH), criado pelo
Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça, possui a Comissão
Permanente de Promotores da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
(Copevid). Essa Comissão elaborou roteiros de visitas técnicas à Casa Abrigo e
ao Centro de Referência e Atendimento à Mulher, para servir de subsídio à
propositura de medidas judiciais e extrajudiciais (O ENFRENTAMENTO, 2011).
Um
dos serviços públicos necessários e pouco eficientes é o da Defensoria Pública
ou de Assistência Judiciária Gratuita, em sede policial e judicial. A
determinação legal de que a mulher em situação de violência doméstica e
familiar seja acompanhada de advogado, em todos os atos processuais, cíveis e
criminais (art. 27) não está sendo cumprida. A assistência jurídica faz uma
diferença enorme para as mulheres, pois lhes dá condições de entender o
processo judicial e de ficarem menos vulneráveis às argumentações utilizadas
pela defesa dos agressores e mesmo de juízes/juízas e de promotores/promotoras
que buscam o arquivamento em nome da preservação da família. O cumprimento da exigência legal de
assistência judiciária é um tema que deveria merecer do Ministério Público uma
atenção maior.
Quanto
à obrigação de cadastramento dos casos em que ocorre atuação do Ministério
Público, vem sendo implementada, a partir da normativa imposta pelo Conselho
Nacional do Ministério Público (CNMP) de registro padronizado em sistema de
toda atuação ministerial. Trata-se de ferramenta indispensável para gerar
estatísticas e relatórios com vistas a orientar a política institucional nas
diversas áreas de atuação. No tema específico da violência contra as mulheres
pouco ainda se faz.
Do
que foi exposto, concluo que o Ministério Público tem um papel relevante para
assegurar a efetividade da Lei Maria da Penha. Há uma atuação eficiente de
muitos/muitas promotores/promotoras de Justiça, mas persiste um déficit que acredito
só será superado na medida em que a instituição também incorporar em suas
estruturas, procedimentos e decisões, a perspectiva de gênero e o compromisso
permanente com a igualdade de direitos.
Fonte:
compromissoeatitude
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