Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil. Arte: André Zanardo / Justificando.
Todos os que acompanham com um mínimo de senso crítico o Caso Lula – que ficará na história como o caso da guerra do Juiz Moro contra Lula – são invadidos pela (perturbadora) percepção, ou assaltados pela (inquietante) impressão de que o objetivo do Juiz Moro, desde as primeiras investigações até a sentença final, era condenar Lula.
É o caso mais evidente, na história da justiça criminal brasileira, de um processo penal construído sobre uma hipótese judicial, que unificou a ação do órgão da jurisdição com a ação repressiva dos órgãos da acusação penal e da investigação criminal contra um cidadão brasileiro.
Em síntese, as garantias fundamentais de proteção do cidadão contra o poder repressivo do Estado podem ser assim enunciadas: se existe prova da materialidade de um crime, a Polícia deve instaurar uma investigação para identificar a autoria; se existe prova de materialidade de um crime e indícios suficientes de autoria, o Ministério Público deve iniciar uma ação penal; se, finalmente, além de qualquer dúvida razoável, existe prova do crime e indicações suficientes de autoria, o Juiz pode condenar o acusado, observado o devido processo legal, com o contraditório processual, a ampla defesa, a presunção de inocência e outras garantias.
O Caso Lula, contudo, é o mais escandaloso exemplo da sistemática violação desses princípios: a investigação policial foi instaurada com base em simples suspeita de autoria de fatos indeterminados – portanto, sem prova de materialidade de qualquer fato criminoso; a denúncia do Ministério Público foi apresentada sem nenhuma prova de materialidade dos fatos imputados e, por isso, com imaginários indícios de autoria dos inexistentes fatos imputados, segundo a famosa confissão pública da Força Tarefa do MPF: “não temos prova, mas temos convicção”.
Enfim, a condenação criminal proferida pelo Juiz Moro foi o desfecho antecipado da hipótese judicial anunciada, que impulsionou um processo inquisitorial de fazer inveja à justiça penal medieval, com a violação das mais elementares garantias constitucionais, desde o contraditório e a ampla defesa, que estruturam o processo legal devido, até os direitos de privacidade e de intimidade, dilacerados por ilegais interceptações telefônicas e buscas e apreensões, além das delações premiadas oportunistas, imorais e, com assustadora frequência, falsas.
Na sentença condenatória, a parcialidade do Juiz Moro é visível desde o relatório do ato decisório (32-39), no qual a síntese exaustiva das alegações finais do MPF contrasta com a deformada descrição dos argumentos de defesa de Lula, que aparece no relatório da Sentença (39-47) em esquálidos parágrafos, descritos em linguagem irônica, às vezes desdenhosa, descartando argumentos sérios e destacando defeitos supostos.
Na fundamentação da sentença, o Juiz Moro nega a acusação de parcialidade (arguida em exceção de suspeição rejeitada pelo Juiz e pelo Tribunal) com a cômoda alegação evasiva de diversionismo da Defesa, porque não teria base fática e o argumento seria inconsistente, segundo disse o TRF-4 (48-57).
Aqui, como em todo o processo, o que vale é o argumento da autoridade, e não a autoridade do argumento.
Apesar de legitimada pela (contundente) verdade dos fatos: mais uma vez, prevalecem as metarregras idiossincráticas, mais ou menos inconscientes (preconceitos, estereótipos e outras deformações ideológicas) sobre as regras jurídicas de interpretação processual (literal, sistemática e teleológica), como mostra a Criminologia. Assim, a leitura da sentença diz que a perseguição pessoal de Lula, promovida pela guerra jurídica de processos políticos travestidos de processos criminais, seria uma questão superada – afinal, Lula seria julgado pela acusação de corrupção e de lavagem de dinheiro, e não pela opinião política oupelas políticas de governo, diz o Juiz Moro.
A Queixa criminal e a Representação Disciplinar promovidas pela Defesa contra o Juiz Moro são reduzidas a simples manobras estratégicas de defesa e definidas como medidas questionáveis, com o objetivo de minimizar a natureza grave dos fatos imputados, sempre qualificados como diversionismo da defesa, que em lugar de discutir a causa teria preferido fazer reclamações contra o Juiz e o MPF (58-65), embora queixas criminais e representações disciplinares não possam ser confundidas com meras reclamações, como pretende o Juiz Moro. Para maior clareza:
a) a Queixa, como ação penal privada subsidiária da ação pública, imputou ao Juiz Moro os crimes de abuso de autoridade e de quebra de sigilo de interceptação telefônica, mas foi rejeitada pela 4ª Seção do TRF-4 por falta de justa causa, porque duas ações penais anteriores sobre os mesmos fatos – mal apresentadas por pessoas do povo, embora em simpática defesa de Lula – teriam sido arquivadas por atipicidade da conduta, pelo mesmo Tribunal;
b) a Representação Disciplinar contra o Juiz Moro, fundada nos mesmos fatos, foi arquivada por decisão majoritária da Corte Especial do TRF-4, que não conseguiu ver na decisão judicial atos criminosos, mas simples exercício regular de jurisdição, porque a Operação Lava Jato não precisaria seguir as regras dos processos comuns, segundo o acórdão da Corte Especial; mas lúcido voto contrário do Desembargador Federal Rogério Favretto destacou a subordinação do Poder Judiciário “aos dispositivos legais e constitucionais”, cuja inobservância no Direito Penal seria temerária“se feita por magistrados sem compromissos democráticos” – uma decisão encoberta pelo Juiz Moro sob o rótulo neutro de “um voto vencido isolado”.
Mas o próximo julgamento do Tribunal não mudará a decisão anterior, não obstante a ciência de que os fatos imputados foram cometidos pelo Juiz Moro. No Brasil, a tendência dos Tribunais é proteger a decisão de seus Juízes, como se a Justiça fosse um continuum institucional – e não um Poder do Estado estruturado sobre a garantia constitucional da duplicidade de instâncias. Contudo, nenhuma retórica ou artifício linguístico poderá escamotear a verdade dos fatos, de amplo conhecimento do povo, o verdadeiro juiz da história.
Juarez Cirino dos Santos é Advogado criminalista, Professor de Direito Penal da UFPR, Presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC e autor de vários livros.
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