Foto: Filipe Araújo/Fotos Públicas. Arte: André Zanardo/Justificando
Episódio n. 6 da Série “A guerra de Moro contra Lula” tem por base a sentença de Sérgio Moro. Não deixe de conferir os Episódios n. 1, 2, 3, 4, 5 e 6. Série visa qualificar a cobertura jornalística de demais veículos sobre o tema (com indicações de onde checar a informação no processo pela palavra “Evento”, bem como nos números entre parênteses), bem como trazer a análise do Professor Juarez Cirino dos Santos, que teve íntimo contato com o caso, para além das visões comuns.
1. A opinião da testemunha de acusação sobre o fato. A testemunha deve descrever os fatos que conhece, sem emitir opiniões pessoais (art. 213, CPP), mas o MPF queria saber a opinião da testemunha de acusação Mariusa sobre o tema central da imputação: se Marisa Letícia (esposa de Lula) era tratada pela OAS (a) como adquirente do imóvel, (b) como pessoa que visitava o imóvel para ver se tinha interesse em comprar, ou (c) como pessoa que já era destinatária do imóvel?
A Defesa disse que o MPF estava induzindo a resposta, o Juiz Moro rejeitou a objeção, dizendo que o MPF colocava três alternativas, com nova objeção da Defesa dizendo que era uma opinião da testemunha que o MPF queria, ignorada pelo Juiz Moro, que pediu ao MPF para reformular a pergunta (a testemunha não tinha ouvido), agora apresentada em duas opções: se Marisa Letícia era tratada (a) como possível compradora do imóvel, ou (b) como pessoa para quem o imóvel já tinha sido destinado?
A Defesa de outro acusado interfere, o Juiz Moro repela a questão informando não estar sendo gravada sua intervenção, a mesma Defesa diz que a pergunta já foi feita e, mesmo assim, o Juiz Moro pede para o MPF refazer a pergunta, agora assim reformulada: se Marisa Letícia era tratada (a) como pessoa que poderia vir a adquirir o imóvel, ou (b) como pessoa que já havia adquirido o imóvel – explicitando, se já era proprietária do imóvel, se o imóvel já estava destinado a ela?
Neste ponto, intervém a Defesa de Lula com seu protesto, também rejeitado pelo Juiz Moro dizendo que a Defesa estava sendo inconveniente, com nova manifestação da Defesa de Lula dizendo que o MPF está pedindo a opinião da testemunha e que a Defesa não era inconveniente porque estava no exercício da profissão; o Juiz Moro retruca que a questão já foi indeferida e interrompe fala da Defesa repetindo o indeferimento da questão, provocando a resposta indignada de que o Juiz não pode cassar a palavra da Defesa, ao que o Juiz Moro diz, simplesmente: posso, doutor!
A defesa criminal é incompatível com a intimidação – ou, como dizia Sobral Pinto, a advocacia criminal não é profissão para covardes! Então ocorre o mais tenso embate da Operação Lava Jato.
Defesa de Lula: – Não pode, porque nós estamos colocando uma questão muito importante: o ilustre procurador está pedindo a opinião da testemunha e ele não pode pedir a opinião da testemunha!
Juiz Moro: – O doutor está sendo inconveniente, já foi indeferida sua questão, já está registrada; e acrescentou, gritando: – E o senhor respeite o juízo!
Defesa de Lula: – Mas, escute, eu não respeito Vossa Excelência enquanto Vossa Excelência não me respeita como defensor do acusado!
Juiz Moro (aos gritos): – O senhor respeite o juízo, já foi indeferido!
Defesa de Lula: – Vossa Excelência tem que me respeitar como defensor do acusado, aí Vossa Excelência tem o respeito que é devido à Vossa Excelência!
Juiz Moro: – Já foi indeferido!
Defesa de Lula: – Mas se Vossa Excelência atua aqui como o acusador principal, Vossa Excelência perde todo o respeito!
Juiz Moro (gritando): – Sua questão já foi indeferida, o senhor não tem a palavra! E, aparentemente perturbado, dirige-se à testemunha: – O senhor pode repetir essa questão que foi formulada pelo (…). Percebe o equívoco, e corrige-se, perguntando à testemunha: – A senhora pode responder essa questão: afinal, ela era tratada como adquirente potencial ou uma pessoa para o qual o imóvel já havia sido destinado?
Testemunha Mariuza, encolhida, com voz sumida, quase balbuciante, como um animalzinho acuado, intimidada pela imagem e pela voz do Juiz Moro, respondeu: – “Tratada como se o imóvel já tivesse sido destinado” (142, Evento 425).
2. A extração de um juízo de valor da testemunha. E o Juiz Federal, que deveria vedar apreciações pessoais da testemunha, exigiu a opinião pessoal da testemunha de acusação Mariuza – e utilizou essa opinião pessoal como prova de corroboração de delações extraídas sob coação de delatores submetidos à tortura da prisão.
O registro audiovisual do evento elimina toda dúvida: no papel assumido de principal acusador, substituindo-se ao Ministério Público na prova da questão central da imputação, o Juiz Moro extrai a fórceps a opinião da testemunha, arrancando das entranhas psíquicas cheias de medo da depoente o juízo de valor que procurava para condenar Lula – apresentado na sentença como prova de corroboração de delações premiadas falsas, para espanto do meio jurídico e do público em geral – cujas emoções também distinguem o normal do patológico. Como o labeling approach demonstra, o Juiz Moro não estava em busca da qualidade de um ato criminoso, mas em busca da qualificação de um ato como criminoso, que poderia ser obtida pela opinião de uma testemunha, como foi o caso. E a testemunha, que deve informar sobre fatos que conhece para o Juiz julgar, formulou um julgamento sobre o fato no lugar do Juiz – e o Juiz, que deve fazer juízos de valor sobre fatos informados, toma uma atitude de fato que transfere à testemunha o juízo de valor sobre o fato. O Tribunal não pode decidir o recurso sem analisar o vídeo dessa audiência anormal, em que a opinião da testemunha foi extraída por intimidação, configurando obtenção de prova por meios ilícitos.
3. A incógnita do futuro do pretérito do Juiz Moro. O Juiz Moro diz ter conduzido as audiências da melhor forma possível para colher a prova e evitar que o tumulto gerado pela Defesa, com ofensas pontuais inclusive, atrapalhasseo processo. E acrescenta que poderia ter tomado providências mais enérgicas contra o comportamento inadequado da Defesa, mas preferiu evitar questões paralelas desnecessárias (146). Ignorando o ato falho do Juiz Moro, para quem a Defesa atrapalha o processo, a pergunta que insiste em não calar é sobre a natureza das providências mais enérgicas não tomadas: a) prender a Defesa, sem flagrante de crime? b) processar a Defesa, também sem prática de crime? c) representar contra a Defesa na OAB, igualmente sem falta disciplinar? Nunca saberemos o que o futuro do pretérito reservaria à Defesa de Lula.
Juarez Cirino dos Santos é Advogado criminalista, Professor Titular de Direito Penal da UFPR, Presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC e autor de vários livros.
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