O devido processo legal, também chamado princípio do processo justo, assegura o desenvolvimento adequado do processo, presidido por um juiz imparcial
Por Roberto Ferreira Filho, Juiz de Direito
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“Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação/Que país é esse?“
– Legião Urbana
Não se discute que o princípio do devido processo legal, previsto no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal (CF), é elementar, basilar, informador de qualquer processo minimamente democrático.
Como diz Rubens Casara (2013) o devido processo legal “assegura (…) o desenvolvimento adequado do processo, de acordo com a normatividade aplicável (…). É também conhecido como princípio do processo justo”, e, como assinala Nelson Nery Júnior (2010), “é, por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios e regras constitucionais são espécies”.
No famoso caso do ex-presidente Lula, que tramitou na 13ª Vara Federal de Curitiba, tendo como titular, à época, o agora Ministro da Justiça Sérgio Moro, desde a chamada fase pré processual uma série de decisões afrontaram, e afrontaram gravemente, justamente, dentre outros princípios, o do devido processo legal.
Basta referir, por exemplo, o episódio da desnecessária, injustificada e ilegal condução coercitiva do ex-presidente para que fosse ouvido pela polícia federal – sem que tivesse, em momento anterior algum, se negado a faze-lo, embora até pudesse, embasado no princípio do nemo tenetur se detegere (o direito de não produzir prova contra si mesmo, conforme artigo 5º, LXIII, da CF) – que teve ampla e sensacionalista (termo tão utilizado recentemente, em audiência na Comissão de Constituição e Justiça do Senado) cobertura midiática, tudo a fim de ir conduzindo e formando a opinião pública (publicada) em desfavor desta importância liderança política e de seus aliados, notadamente da ex-presidenta Dilma, às vésperas do julgamento do processo de impeachment (em verdade, golpe, ainda que “mais sofisticado”, sem emprego de força, fechamento do parlamento etc), já que realizada aos 4.3.2016, enquanto o julgamento, pela Câmara Federal, que autorizou a abertura do dito processo, se verificou aos 17.4 desse mesmo ano.
O artigo 260 do Código de Processo Penal (CPP) reza: “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”, calhando esclarecer que a situação do ex-presidente Lula não se encaixava em nenhuma de ditas hipóteses, menos ainda à primeira, cuja inconstitucionalidade da previsão, aliás, foi reconhecida pelo pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento das ADPF´S 395 e 444.
Outro episódio exatamente nesta mesma direção foi a divulgação de conversa telefônica travada pelos dois ex-presidentes, quando Dilma ainda exercia a presidência da República, conversa esta que nem de longe guardava qualquer relação com o objeto da investigação da qual a interceptação decorreu e, para piorar, obtida após a própria autoridade judicial, justamente o mesmo então juiz federal Sérgio Moro, ter determinado seu encerramento (A suspensão da captação do áudio do telefone de Lula, em que ele conversou com Dilma, foi determinada às 11h12 do 16 de março de 2016. O diálogo foi gravado às 13h32. Um delegado comunicou o conteúdo a Moro às 15h34, mas mesmo assim Moro levantou o sigilo às 16h21 do mesmo dia).
Aqui é preciso não olvidar o que dispõe o artigo 9º da Lei 9.296/1996: “A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada”.
Ou, ainda, seu artigo 10: “Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”.
Também neste segundo episódio o levantamento do sigilo da conversa se deu em estratégico período do calendário político do ano de 2016, qual seja, em março, às vésperas do julgamento de abertura do predito processo de impeachment de Dilma.
Outros vários episódios – v.g.: tratamento ríspido à defesa; exigência do comparecimento pessoal de Lula para a oitiva de testemunhas de defesa (após superado) etc – marcaram a condução dos processos do ex-presidente pelo então juiz federal, tudo isso a indicar – o que as mensagens de texto que estão agora sendo divulgadas pelo site The Intercept Brasil corroboram – que as posteriores condenações (a primeira, do caso conhecido como “Triplex”, ainda proferida por Moro) do acusado eram os desfechos óbvios.
Não por outro motivo, aliás, quer dizer, pela forma de condução dos processos de Lula pelo então juiz federal Moro, que as revistas semanais Veja e Isto é, em mais de uma edição, retrataram a existência de duelo entre o então réu, Lula, e o então juiz. Moro, em verdadeira afronta à comezinha distinção de papéis que deve nortear o processo penal brasileiro (acusação, defesa e juiz, que devem ser representadas, como é cediço, por personagens distintos).
Ora, evidente que providências como as que foram tomadas em desfavor do acusado e de sua defesa ao longo da tramitação dos processos, ao arrepio, inclusive, de textos expressos de lei, fizeram com que o devido processo legal procedimental (procedural due process of law) fosse ignorado, atropelado, contaminando, até porque não se tratou de uma ilegalidade isolada (como se uma já não bastasse), mas da imparcialidade do julgador (tema já tão bem trabalhado em outro artigo desta mesma coluna), o que certamente, à luz também do artigo 564, I, do CPP, deve(ria) levar à nulidade dos feitos.
Os que as conversas divulgadas pelo The Intercept Brasil explicitam, e que tem tomado a necessária atenção da comunidade jurídica em especial e, de resto, da sociedade brasileira em geral, é o que a própria condução pública dos processos pelo então juiz Moro indicavam: a constante e sucessiva violação ao princípio constitucional do devido processo legal e a notória violação, também por isso, da imparcialidade do julgador.
Já foram expostas trocas de mensagens entre o então juiz e o procurador Deltan Dallagnol, um dos responsáveis pela chamada “força tarefa da operação lava jato”, todos indicativos desta quebra da indispensável equidistância que o julgador deve manter em relação às partes, e que não se confundem, absolutamente, com os rotineiros diálogos que por vezes os juízes travam com promotores, advogados, delegados etc.
São mensagens que apontam no sentido de atuação nitidamente compromissada do juiz para com a acusação, inclusive com conselhos dados por ele a ela, em desrespeito flagrante ao disposto no artigo 254, IV, do CPP.
Então, como dito, as conversas eliminam qualquer margem para dúvida, deixando claro que as condenações de Lula foram tomadas em processos que violaram o mais elementar princípio constitucional do processo, especialmente do processo penal (pelo tipo de interesse em jogo: a liberdade): o do devido processo legal.
Sobre a atuação equilibrada e imparcial por parte do juiz no processo penal são oportunas, a esse respeito, as lições de Geraldo Prado (2001):
A posição equilibrada que o juiz deve ocupar, durante o processo, sustenta-se na ideia reitora do princípio do juiz natural – garantia das partes e condição de eficácia plena da jurisdição – que consiste na combinação de exigência da prévia determinação das regras do jogo (reserva legal peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do juiz, tomada a expressão no sentido de estarem seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a priori, a uma das alternativas de explicação que autor e réu reciprocamente contrapõe durante o processo (…). Ocorre que o devido processo legal só constitui, de fato, mecanismo civilizado de resolução de conflitos de interesses se o resultado não puder ser determinado antecipadamente, isto é, só há processo penal real se no início do procedimento ambas as teses – de acusação e de resistência – puderem ser apresentadas em condições de convencer o juiz (Otto Kirchheimer). É claro que, nestes termos, o juiz não estará em condições de julgar e, portanto, deverá ser excluído e substituído, se não oferecer às partes suficiente credibilidade quanto à sua imparcialidade.
Ainda sobre o tema, diz Ferrajoli (2006):
(…) é necessário, para que seja garantida a imparcialidade do juiz, que este não tenha de modo algum qualquer interesse na causa, seja público ou institucional. Em particular é necessário que ele não tenha um interesse acusatório.
Os fatos aqui retratados e que, já há muito, são de conhecimento público, apontam, lamentavelmente, para um atuar conjunto do órgão acusador e do julgador, o que, por evidente, é de todo incompatível para com o modelo processual desenhado no Brasil, mormente a partir do advento da atual CF. Rogamos, todavia, para que, ao fim e ao cabo, apesar das consequências, inclusive políticas, que tudo isso já causou, prevaleça o que sempre há de prevalecer em um Estado Democrático de Direito: a Constituição Federal.
Roberto Ferreira Filho é Juiz da 1ª Vara Criminal de Campo Grande – MS, Mestre em Direito Processual e Cidadania pela Unipar, Mestre em Estudos Fronteiriços pela UFMS e Membro da AJD