Por Ignacio Godinho Delgado, professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), nas áreas de História e Ciência Política, e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia-Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT-PPED). Doutorou-se em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1999, e foi Visiting Senior Fellow na London School of Economics and Political Science (LSE), entre 2011 e 2012
Autor de uma obra que lidou com temas variados, Fernando Henrique Cardoso, na condição de sociólogo, ficou conhecido principalmente pela noção de desenvolvimento dependente e associado (também vinculada ao nome de Florestan Fernandes), com a qual definiu a trajetória do capitalismo latino-americano (Cardoso e Falletto, 1970). Nela, distinguia-se das concepções ligadas à CEPAL e à versão da teoria da dependência de Gunder Frank e Ruy Mauro Marini, que apontavam limites estruturais à dinamização do mercado interno nos países do continente, sinalizando para a estagnação ou mesmo o colapso do capitalismo na região. Cardoso, ao contrário, considerava que as articulações entre os diversos segmentos da produção capitalista eram capazes de conferir dinamismo ao mercado, não obstante sua tendência à concentração de renda.
No caso brasileiro, esse diagnóstico se conectava a uma percepção de que o empresariado industrial era incapaz de “ação concertada”, dadas as características da formação do mercado para a indústria no país (Cardoso, 1972). No estágio de internacionalização do mercado interno, com a penetração das multinacionais, tal empresariado, conquanto preservasse algum espaço econômico, ficava “enfeudado” às corporações multinacionais e ao Estado (Cardoso, 1975).
Num registro que hoje soa irônico, em 1974, Cardoso assinalava que o capitalismo dependente e associado forjara, “talvez pela primeira vez na história do Brasil”, a presença de “forças sociais como a massa trabalhadora urbana, os segmentos dos setores técnicos do funcionalismo e das empresas (…) a baixa classe média urbana, o estudantado universitário em expansão…”. E pontificava que “por trás destas forças (que poderiam formar no futuro, grosso modo, uma Partido dos Assalariados) existem os deserdados de sempre que (…) talvez possam, em aliança com o Partido dos Assalariados, constituir base social para uma Oposição” (Cardoso, 1975: 220).
Na década de 1990, Fernando Henrique Cardoso negou ter dito a frase “esqueçam tudo que escrevi”, a ele atribuída já na condição de presidente da República. Não era necessário mesmo negar. O que a teoria do capitalismo dependente e associado apresentava como um diagnóstico do processo de desenvolvimento capitalista, tornou-se, no governo de FHC uma prescrição e uma terapia para o que se convencionou chamar decrise do desenvolvimentismo. A referência à possibilidade de formação de um Partido dos Assalariados não era uma escolha, mas um juízo analítico. A escolha foi, em meio às orientações das agências multilaterais sobre asreformas de mercado nos países em desenvolvimento, na década de 1990, a perspectiva de encerrar a Era Vargas, com a atração de capitais externos e o aprofundamento da internacionalização da economia nacional tomados como decisivos a um novo ciclo de desenvolvimento.
Na década de 1990, uma série de medidas do governo FHC tornou a burguesia local ainda mais “enfeudada” às multinacionais. Com a Emenda Constitucional Nº 6 foi eliminada a noção de empresa brasileira de capital nacional, interditando seu tratamento diferenciado nas políticas públicas. A desproteção tarifária, inaugurada no governo Collor, foi acompanhada, via política macroeconômica, da desproteção cambial, primeiro com a virtual paridade entre o real e o dólar (1995-1998), em seguida, de forma algo atenuada, com a política de metas de inflação. Rechaçou-se, ainda, a utilização de políticas industriais para fortalecimento de empresas e setores, induzidos a um processo de reestruturação guiado fundamentalmente pelo mercado. Por fim, mirando até a Petrobrás, e com sustentação do BNDES, a política de privatizações enfraquecia os centros de pesquisa instalados nas estatais e esvaziava um tradicional mecanismo de política industrial e de inovação, ligado aos efeitos projetados dos investimentos das empresas públicas nas cadeias produtivas e em seu entorno econômico.
Para as empresas nacionais, acenava-se, de modo a compensar a abertura econômica, com a redução do Custo Brasil, especialmente o custo do trabalho, mirando a flexibilização das disposições da CLT (Delgado, 2001). Apostava-se, pois, no trabalho barato para assegurar competitividade às empresas locais, uma perspectiva reacionária e ineficaz para fazer frente a países como a China e Índia, em pleno processo de transição rural-urbana (já completada no Brasil), dispondo de um vasto reservatório de mão de obra a ser incorporada ao mercado de trabalho urbano, induzindo a níveis salariais reduzidos (Delgado, 2015).
Nos enunciados do governo FHC, imaginava-se que a exposição das empresas brasileiras a maior concorrência, derivada da abertura econômica e facilitação dos fluxos de capital, acentuaria a sua capacidade e disposição de inovar, uma dogmática cega às experiências reais vividas por países que já dispunham de indicadores elevados de inovação ou logravam êxito em processos de equiparação aos países centrais, partindo de posições semiperiféricas.
Em tais experiências, o papel do Estado foi central não apenas para garantir estabilidade aos contratos e segurança nos direitos de propriedade intelectual (Delgado et al., 2010; Delgado, 2015). Coube a ele, também (e principalmente), orquestrar arranjos para reduzir a incerteza que envolve a atividade inovadora, a exemplo do EUA (para ficarmos num país tomado como paradigma de uma economia liberal), que, para tal propósito, recorre a volumosos aportes estatais para a pesquisa e às compras governamentais. Por seu turno, inexistem casos de sucesso, entre países que ostentam patamares elevados de inovação, em que o êxito alcançado não estivesse assentado num núcleo sólido de empresas nacionais, dada a hierarquia que circunscreve a atuação das multinacionais, mantendo em seus países-sede as atividades de inovação mais relevantes e transferindo às suas filiais atribuições de menor significado.
O governo FHC encerrou-se, em 2002, legando ao país um crescimento monumental da dívida pública em sua dimensão financeira, desemprego, desnacionalização, retração da capacidade indutora e mesmo administrativa do Estado, colapso na infraestrutura (evidenciado de forma mais aguda na crise do setor energético), sem lograr qualquer elevação dos indicadores de inovação da economia brasileira (Delgado, 2001 e 2015). A partir daí, seguiram-se quatro vitórias do PT nas eleições presidenciais, sempre ancoradas num discurso que tinha como mote a comparação com os mandatos tucanos.
Definiu-se, então, o móvel principal do discurso e da atuação política de FHC após sua saída do governo: o ressentimento com o PT e especialmente com Lula, que se tornou o presidente mais popular da história do Brasil. É certo que, pontualmente, pode-se apontar posturas positivas de FHC, após ter deixado a presidência, como na abordagem do tema da descriminalização das drogas, uma alternativa a ser debatida dado o fracasso do tratamento apenas repressivo deste problema. O que sobressai em sua atuação, contudo, é a incapacidade, resultante da vaidade e ressentimento monumentais que o caracterizam, de apresentar-se como uma referência de equilíbrio para a consolidação da convivência democrática no país, como caberia a um ex-presidente da República.
Neste ano de 2015, FHC, ao invés de exibir a senioridade que advém de sua trajetória intelectual e política, deixou-se guiar, de forma pueril, pela vaidade e o ressentimento aludidos acima, vendo na crise política, instalada pelo desrespeito da oposição aos resultados das urnas em 2014, a oportunidade para a vendeta e a reabilitação de sua imagem. Alguns episódios sintomáticos, revelam, ademais, afoiteza e descuido nos enunciados produzidos por quem já foi chamado de príncipe da sociologia brasileira.
Em abril, logo após o Datafolha divulgar pesquisa apontando a preferência pela renúncia de Dilma, entre os participantes de ato contra o governo, na Avenida Paulista, FHC, jogando para a sua plateia, faz eco a tal perspectiva, sugerindo a Dilma um “gesto de grandeza” com a renúncia. O ambiente amaina e ele passa a destacar a honestidade de Dilma e a desancar Lula e o PT, falando em corrupção organizada na Petrobrás apenas a partir de 2003 (tese de um dos “delatores premiados” da Lava a Jato), embora diversas fontes indicassem a existência de esquemas organizados em momentos muito anteriores. O próprio FHC confessaria candidamente em seus diários (que mereceram capa da impoluta e imparcial revista Veja), ter recebido denúncias, em 1996, sobre práticas de corrupção na Petrobrás, alegando ter evitado a apuração para não atrapalhar a tramitação legislativa da medida que punha fim ao monopólio estatal do petróleo. Pouco depois, foram redefinidos os processos de contratação de serviços pela Petrobrás, que facilitaram a prática de corrupção na empresa. Altivamente, distante de tudo, FHC preferiu fazer coro à narrativa midiática que vê na corrupção um problema inerente ao petismo, sem colaborar para a busca de soluções institucionais para o problema.
Ao final do ano, após o acolhimento, por Cunha, do pedido de impedimento, FHC observa, diante de movimento de alta na BOVESPA, que “os mercados preferem o impeachment”, como se isso fosse relevante para a análise do mérito do processo, revelando, ademais, desatenção a outro elemento, apontado na própria mídia, para explicar o comportamento dos “mercados”, qual seja a simultânea aprovação pelo congresso da nova meta fiscal, que tanto destravou a capacidade de operação do governo, quanto esvaziou os fundamentos do pedido de impedimento formulado. Por fim, FHC terminou o ano como um reles Kim Kataguiri octogenário, convocando, pelo twitter, as manifestações de 13 de dezembro em favor do impedimento de Dilma. Já deveria ter observado que tais manifestações têm liberado a fúria fascista de uma turba formada e adulada pela mídia, a pedir por vezes a intervenção militar e a incitar à violência.
Enquanto isso, atentos aos perigos que rondam a democracia, antigos parceiros de convivência acadêmica e política, como Luiz Carlos Bresser Pereira e Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministros de FHC, fazem reiterados apelos ao bom senso, apontado a ausência de fundamentos no pedido de impedimento. Quem já foi o príncipe da sociologia e acabou conhecido como o príncipe da privataria, poderia ouvir velhos amigos, para não incluir em seu extenso currículo a condição de golpista.
Referências
CARDOSO, F. H. (1975) Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra
CARDOSO, F. H. e FALLETO, E. CARDOSO, F.H. & FALLETO, E. (1970) Dependência e desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar.
CARDOSO, F. H. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. 2a ed., São Paulo: DIFEL, 1972.
DELGADO, I. G (2015) “Política industrial na China, na Índia e no Brasil: legados, dilemas de coordenação e perspectivas”. Texto para Discussão Nº 2059. Brasília: IPEA
DELGADO, I. G. (2001) Previdência Social e Mercado no Brasil – a presença empresarial na trajetória da política social brasileira. São Paulo: LTr.
DELGADO, I. G. CONDÉ, E.S., ESTHER, A.B., SALLES, H.M. (2010). “Cenários da Diversidade – variedades de capitalismo e política industrial nos EUA, Alemanha, Espanha, Coréia, Argentina, México e Brasil (1998-2008)”.Dados. Rio de Janeiro.
Fonte: DCM
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