Líderes de movimentos sociais, políticos, jornalistas e
servidores da Câmara dos Deputados revelam um lado pouco conhecido da “Casa do
Povo”: a truculência da polícia, a reação violenta às manifestações e as
diversas restrições de acesso alertam para
um plano que busca manter os cidadãos cada vez mais distantes dos
representantes que ajudaram a eleger
Em tese, a Câmara dos Deputados tem o objetivo de ser uma
autêntica representante da população brasileira e legislar sobre os assuntos de
interesse público, mediante discussões que deem espaço à pluralidade de ideias
e opiniões. Mas, na prática, o que se vê é que a chamada “Casa do Povo” está
cada vez mais distante de seus verdadeiros donos, que frequentemente têm sido
impedidos de entrar no local que é seu por direito.
"Querem calar as nossas vozes, é inadmissível”, diz
vice-presidente da CUT (Foto: Arquivo/Agência Brasil)
“Querem calar as nossas vozes, é inadmissível”, diz
vice-presidente da CUT (Foto: Arquivo/Agência Brasil)
Alguns artifícios usados para restringir a circulação de
pessoas são nítidos. Outros, nem tanto. Só quem acompanha o dia a dia lá dentro
é capaz de mostrar o cerco se fechando, na tentativa de proteger e afastar os
parlamentares de seus próprios eleitores. Fórum ouviu representantes de
diversos segmentos, como servidores, parlamentares, líderes de movimentos sociais
e jornalistas, com o intuito de traçar um perfil do modus operandi da Câmara
hoje, sob o comando do presidente mais polêmico de sua história: Eduardo Cunha
(PMDB-RJ).
A truculência da Polícia Legislativa, a restrição de entrada
dos cidadãos nas galerias para acompanhar votações importantes e várias vias de
acesso obstruídas nas dependências da Casa são alguns dos exemplos dados pelas
fontes. O resultado se traduz em números. Em 2013, a Câmara recebeu quase 737
mil cidadãos, segundo os registros oficiais. No ano seguinte, baixou para 628,4
mil. No primeiro quadrimestre de 2015, o número era de 224 mil.
Nas visitas guiadas, normalmente realizadas por turistas que
desejam conhecer um pouco mais sobre o cenário político do país, também houve
queda. Em 2012, 193 mil pessoas estiveram no passeio, que dá direito a
percorrer as dependências do Congresso Nacional. Esse índice baixou para 155,5
mil, em 2013, e 151,5 mil em 2014. Os oito primeiros meses de 2015 registraram
97,6 mil visitantes.
Um aviso para quem decidir participar do tour em Brasília: o
acesso está um pouco mais difícil. Antes, os grupos eram formados por ordem de
chegada, sem muitos entraves. Agora, só com agendamento prévio pela internet, a
depender da disponibilidade de dias e horários. E, para não frustrar os mais
empolgados, outro alerta. O gabinete do chefe máximo da Casa também está
fechado para visitação pública. Ou seja, o turista pode conhecer e tirar fotos
no gabinete da presidenta da República, que é aberto, mas no do presidente da
Câmara, jamais.
Ao que parece, algumas restrições à participação popular já
eram uma tendência percebida desde a gestão de Henrique Alves (PMDB-RN). Aliás,
foi no ano passado, durante a administração dele, que os equipamentos de uso
bélico para a segurança da Câmara tiveram um aumento expressivo de
investimento. Só as compras de munições de alto poder letal, calibre 38 e 40,
somaram 26 mil unidades ao todo, em um valor de R$ 65.520,00.
Em spray lacrimogêneo e spray de pimenta foram gastos R$
166.898,00, sem falar em escudos, capacetes, cassetetes e trajes especiais para
o confronto. Tudo isso foi herdado pela atual presidência da Casa, que não tem
hesitado em utilizar o arsenal contra manifestantes em diferentes situações.
“Robocop”
De acordo com um dos servidores, que trabalha na Câmara há
quase 20 anos e preferiu não se identificar, esse tipo de situação reflete o
tratamento dado à população. “Você chega em um lugar e as pessoas estão
vestidas com um uniforme inspirado no BOPE (Batalhão de Operações Policiais
Especiais). Essa Polícia Legislativa a vida toda trabalhou de terno e gravata.
De uns anos para cá é que virou um ‘Robocop’. É uma mudança muito brusca na
forma de entender o policiamento e a abordagem ao público”, afirma.
Manifestante ferido pela Polícia Legislativa protestava
contra o PL da terceirização (Foto: Reprodução/Facebook)
Segundo ele, há um receio de que se crie uma cultura
opressora que acabe se perpetuando nas próximas gestões e consolide o
afastamento do povo em relação às decisões de seu interesse e que são
discutidas na Casa. O Departamento de Polícia Legislativa (DEPOL) foi procurado
pela reportagem para comentar o assunto, mas informou, por meio da assessoria
de imprensa, que não se pronunciaria a respeito.
E a reclamação é a mesma entre ativistas de movimentos
sociais. Para a presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE), Carina
Vitral, há uma espécie de criminalização de grupos organizados da sociedade
civil. Ela conta que é normal ser barrada junto a outros colegas quando se
identificam como movimento estudantil ou estão com camisetas que representem a
categoria.
Carina cita como exemplo a redução da maioridade penal. Além
do fato de que a militância jovem, contrária à proposta, não foi incluída nos
debates em relação ao tema, ainda foi preciso recorrer a uma liminar no Supremo
Tribunal Federal (STF) para garantir acesso às galerias do plenário para
acompanhar a votação. E, mesmo assim, a decisão judicial em muitos momentos não
foi respeitada.
No início de junho, empurrões e o uso de spray de pimenta
marcaram as agressões aos manifestantes. “Foram justamente os estudantes
brasileiros que, em um passado nem tão longe, deram suas vidas na luta para que
essa Casa fosse reaberta e democraticamente ocupada. É gravíssimo o fato de uma
presidenta da UNE e outras lideranças do movimento estudantil, grande parte
formada por jovens mulheres, serem atacadas inclusive fisicamente no mais alto
parlamento do país”, destaca.
Retrocesso
A vice-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT),
Carmen Foro, também relata ter sido vítima de agressão em outra votação
conturbada na Câmara, a do PL 4330/2004, que propunha a regulamentação dos
serviços terceirizados no país. A militante conta que foi jogada para fora do
Congresso Nacional por três policiais e que, neste dia, acabou ficando com o
braço machucado.
“Em pleno século XXI, os trabalhadores perderam o direito de
expressar sua opinião. Estamos vivendo uma época de total retrocesso da
democracia. Querem calar as nossas vozes, é inadmissível”, protesta. Carmen
aponta ainda para os critérios utilizados pela presidência da Casa para definir
aqueles que podem ou não acompanhar as votações.
Segundo ela, há um beneficiamento da Força Sindical, central
alinhada politicamente com Cunha, que pôde entrar no plenário com uma
liberdade…
que não foi concedida à CUT, contrária ao projeto. Carmen
afirma que o deputado age conforme interesses pessoais, privilegiando aqueles
que concordam com suas propostas, em detrimento de outros.
Catracas
No entanto, a previsão é que o acesso ao espaço de votações
fique ainda mais restrito nesse segundo semestre. Isso porque a Mesa Diretora
já anunciou a instalação de catracas eletrônicas nas entradas do plenário.
Serão aproximadamente 15 roletas com dispositivos para identificação
biométrica, ou seja, pelas digitais. Não há estimativas em relação aos gastos,
pois o processo de licitação para a compra do material está em andamento.
Os equipamentos permitirão que adentrem o plenário por
reconhecimento digital apenas os 513 deputados, 81 senadores, dois ou três
assessores por partido, jornalistas com credencial e assessores técnicos.
Atualmente, o controle de entrada é de responsabilidade de seguranças, que
conferem credenciais e colocam pins na lapela dos parlamentares.
A ideia provocou a reação de muitas pessoas, que julgam a
atitude como antidemocrática. Também há outras preocupações com os obstáculos.
Em caso de emergência, seria mais difícil o esvaziamento rápido do lugar. Para
a deputada Mara Gabrilli (PSDB-SP), que é tetraplégica, a questão envolve o
direito à acessibilidade, uma vez que dependeria sempre de um assessor para
digitar um código numérico para ter o acesso liberado.
A parlamentar diz que tem conversado com o 1º Secretário da
Casa, Beto Mansur (PRB-SP), sobre o receio de haver um retrocesso nas
conquistas alcançadas para que as pessoas com deficiência circulem livremente
pelo local. O deputado garantiu que ela e outros cadeirantes terão autonomia
para ir e vir, mas ainda não apresentou um projeto com alternativas para
resolver a questão.
Chico Alencar: "Cúpula da Câmara tem ojeriza ao
povo" (Foto: Mídia Ninja)
Chico Alencar: “Cúpula da Câmara tem ojeriza ao povo” (Foto:
Mídia Ninja)
A elite entra
Chico Alencar (PSOL-RJ) é outro que vê a situação com
desconfiança. Para ele, a instalação das catracas “é dinheiro público jogado
fora”. O psolista afirma que há na Câmara uma seletividade na circulação de
pessoas muito baseada na categoria profissional e classe social. “É uma Câmara
conservadora, originária majoritariamente de doações empresariais muito
volumosas de empreiteiras incriminadas na [operação] Lava-Jato e com restrições
crescentes de acesso de acordo com a origem social. Há muito mais boa vontade
com quem vai de terno e gravata ou é de categorias da elite, de maior status”,
garante.
Segundo ele, que já está em seu quarto mandato, nunca houve
tantas restrições e policiamento quanto atualmente. “É uma vergonha. Isso
mostra o padrão da democracia brasileira, aversa à participação popular.
Instituições seletivas, que dependem do voto para serem constituídas e têm uma
cúpula que tem ojeriza ao povo. Não quer controle”, denuncia.
“Nunca vi nada igual”
Se o simples ato de caminhar pelos corredores da Câmara dos
Deputados tem se tornado um desafio para boa parte da sociedade, o trabalho de
quem está ali para noticiar os acontecimentos da Casa também passa por
inseguranças.
De acordo com o depoimento de um jornalista, que preferiu
manter a sua identidade em sigilo, o medo de ter a sua credencial negada surgiu
após retratar o presidente de forma pouco elogiosa em suas reportagens. “Quando
foi a minha renovação [da credencial], passei a ficar cismado. Eu já tinha
feito matéria crítica sobre o Eduardo Cunha. Pelo que se ouve, pelo que se sabe
do estilo dele, eu não me surpreenderia”, confidencia. “Nunca vi nada igual”.
Vale lembrar que o acesso à informação de qualidade é um
direito de todos os cidadãos e isso passa pelo livre exercício dos
profissionais da imprensa e pela transparência em relação aos assuntos de
interesse público. Isso permite que o povo exerça algum monitoramento sobre as
ações de seus representantes, garantindo uma democracia, de fato,
participativa. Mas, como muitos outros temas em torno do Congresso Nacional, a
teoria não necessariamente corresponde à realidade.
O jornalista confirma a fala de outros entrevistados no que
diz respeito ao modo como Cunha seleciona quem entra e quem sai da Casa. “No
dia da votação polêmica da terceirização (PL 4330/2004), as centrais sindicais
contrárias praticamente não conseguiram entrar nas galerias porque o controle
era restrito a quem portava os convites. Quem distribuía os convites? O Eduardo
Cunha entregou para os amigos dele entregarem para os amigos dos amigos”,
conta.
Ele acredita que, se não fossem as diversas “peculiaridades”
que envolvem o político, somente a existência do vídeo em que o empresário
Júlio Camargo o acusa de ter cobrado propina de U$ 5 milhões para facilitar
contratos com a Petrobras já seria suficiente para derrubá-lo do cargo. “Por
que ele resiste? Porque ele tem um exército de aliados aqui que dá suporte e
foi construído com base em financiamento de campanha. Então, são pessoas que
devem para ele”, relata.
O profissional explica que a estrutura de poder do
presidente da Câmara está baseada em grupos de interesse, como os evangélicos e
os ruralistas, e que isso independe de partidos. Uma das estratégias utilizadas
pelo político para fazer alianças seria dar projeção a deputados inexperientes
e pouco expressivos. Eles se tornam presidentes e relatores de comissões, por
exemplo, algo que dificilmente seriam sem a ajuda do “padrinho”.
Nos bastidores, o que se conta é que Cunha foi eleito graças
aos votos das bancadas reacionárias e do “baixo clero”, como nos casos citados
pelo jornalista. Aumento de verba, de salários, passagens aéreas para
familiares e outras benesses foram algumas das promessas feitas em troca desse
apoio.
Próximos capítulos
Porém, nos últimos dias, a notícia da denúncia feita pelo
procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ao Supremo Tribunal Federal (STF)
começa a dar um novo rumo a tudo isso. Eduardo Cunha está sendo acusado de
corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do suborno que teria recebido
para facilitar a assinatura de contratos de aluguel de navios-sonda entre a
empresa Samsung Heavy Industries e a Petrobras.
Se o Supremo acatar a denúncia de Janot, o parlamentar vira
réu no processo investigativo. A partir daí, todo o império construído pelo
homem mais poderoso da Câmara está, de fato, condenado à ruína. Mas a pressão,
desde já, segue firme. Deputados de dez partidos diferentes se uniram em um
manifesto pedindo o afastamento imediato dele.
Os próximos capítulos dessa trama serão acompanhados com
curiosidade e receio dentro do Congresso Nacional. No entanto, uma coisa é
certa: a história de Eduardo Cosentino da Cunha já está escrita de forma
definitiva na trajetória da Câmara dos Deputados. Mas, neste caso, como uma
história que muitos gostariam de esquecer.
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