Denúncia
Presente
na Faculdade de Medicina da USP, o 'currículo oculto' é o conjunto de práticas
que visa a manutenção do corporativismo e da exclusão social
Em
2014 aconteceu a CPI dos Trotes, aberta na Assembleia Legislativa de São Paulo
- Alesp, para apurar inúmeras denúncias que chegaram até aquela Casa referentes
à violações de Direitos Humanos nas faculdades paulistas. Devido a gravidade
dos fatos apresentados, nos quatro meses de duração da CPI, a imprensa não
deixou de dar cobertura aos trabalhos da Comissão comandada pelo então deputado
Adriano Diogo. Em novembro de 2015 completou-se um ano da Audiência Pública,
também na Alesp, que deu origem à CPI; e, em março, fará um ano que a CPI se encerrou.
No
domingo último, o jornal Estado de São Paulo (edição de 3/1/2016, pp. E11), na
capa principal do Caderno Metrópole, fez um balanço dos desdobramentos da CPI e
das recomendações por ela feitas. A conclusão do jornal é a de que pouco se
avançou na maioria das faculdades, sendo que impunidade e leniência parecem ser
traços preponderantes de agentes públicos e dirigentes que deveriam dar
prosseguimento aos trabalhos da CPI dos Trotes de forma efetiva e não
cosmética, com exceção da promotora Paula de Figueiredo e Silva, que deu o
primeiro acolhimento às denúncias encaminhadas ao MPE/SP e abriu inquérito; das
colegas que a sucederam no caso, as promotoras Beatriz Helena Budin Fonseca e
Silvia Chakian de Toledo Santos; da direção da PUCCAMP (Pontifícia Universidade
Católica de Campinas); e, claro, da ação corajosa das vítimas e testemunhas que
se apresentaram e de coletivos de estudantes e professores que, por fora da
instituição, colocaram em prática mecanismos para coibir abusos e gerar uma
cultura mais humanizada.
Não
vamos tratar aqui da matéria de o Estado de São Paulo, mas discorrer sobre uma
das consequências mais salientes e pouco debatida sobre o que pode levar a esse
estado de coisas quando não tomado a sério e solucionado. Falamos aqui do pouco
conhecido, mas presente no cotidiano de muitas instituições de ensino: o
currículo oculto.
Currículo
oculto
O
enfoque que damos abaixo é nas escolas médicas, uma vez que foram as mais
trabalhadas durante a CPI dos Trotes, mas é válido para todas as instituições
de ensino que permitem práticas trotistas em seus ambientes acadêmicos.
Um
texto descritivo que enumerasse formas de trote: tinta, farinha, cabelo raspado;
pasta de dente perianal; álcool forçado; banho de urina; piscina de vômito;
formas eufêmicas de abuso sexual etc. A lista, como demonstrou a CPI das
universidades, não teria fim. Mas seria perda de tempo escrever um texto só pra
dizer que não é legal jogar fezes nos colegas, certo?
Grande
parte das pessoas entende trote enquanto conjunto de práticas de recepção
supostamente amistosas, com intuito humorístico, mas que de vez em quando saem
do controle. A intenção aqui é rechaçar esse discurso e mostrar que as
barbaridades relatadas não são ‘acidentes’ ou ‘exageros’, tampouco se limitam
ao período de recepção. Pelo contrário: tais casos são derivações naturais
daquilo que representa a própria essência do fenômeno trote. E suas
consequências se desdobram por muito além das primeiras semanas de curso.
A
cultura de trote tem origem anterior à entrada na universidade. Isso fica
evidente pelo folclore em torno da temática, que embebe o imaginário escolar, a
abordagem do cinema e da literatura, o marketing das empresas de “cursinhos”
etc. Nesse sentido, o recém-ingresso geralmente não é surpreso pelos grupos
trotistas – ele já os esperava, muitas vezes com euforia e ansiedade.
Vale
mencionar que essa expectativa só é possível em uma conjuntura de restrição do direito
à educação. O ensino superior (sobretudo de medicina) é entendido como prêmio,
disputado de forma desigual pelos setores privilegiados da sociedade que
tiveram acesso ao ensino privado e\ou pelo subgrupo que pode pagar pelas
caríssimas mensalidades. Os estudantes que ingressam são então nutridos com
autoenaltecimento e ufania em relação a sua “conquista” e sua faculdade (o que
foi bem exemplificado pelas canções de atléticas e fraternidades durante a CPI
[1]). É frequente que os grupos trotistas alimentem essa cultura de ufanismo e
de superioridade [2], deixando em evidência seu classismo e arrogância.
A
ritualística de trote, então, revela as relações de veteranismo que demarcam a
inserção do recém-ingresso nas dinâmicas hierárquicas da universidade. As
brincadeiras guardam um implícito constitutivo de submissão performática, isto
é, joga-se ludicamente com a autoridade teatral do veterano sobre o calouro. As
piadas, em geral, destacam-se das prerrogativas que o mais velho tem sobre o
mais novo. E esse humor costuma ser embalsamado por todos os pressupostos mais
preconceituosos e marginalizantes contidos na sociedade (não são raras as
piadas e cantos machistas, racistas, transfóbicos, lgbtfóbicos etc.).
“Buceta,
buceta, buceta eu como a seco. No cu, eu passo cuspe. Medicina, medicina é só
na USP!” – gritam os veteranos, rodeando as calouras - “Eu tava no banheiro
comendo a empregada, o índio abriu a porta e eu comi a bunda errada”.
Diante
disso, observamos que a essência do trote repousa sobre a verticalidade das
relações entre veteranos e calouros, sobre a desigualdade de poder, de voz e de
prerrogativas entre esses personagens. Esse fenômeno pode se expressar em
dinâmicas amistosas, mas também pode se radicalizar em situações mais
violentas, o que varia e decorre de sua própria natureza.
A
verticalidade imposta na relação de veteranismo perfaz a maior parte das
instituições universitárias (CAs, DAs, atléticas, fraternidades etc) e se
estende pelo próprio ambiente de ensino, em que os mais velhos, na hierarquia,
tendem a ensinar aos mais novos (internos, residentes, preceptores) as condutas
pertinentes. A despeito das dificuldades próprias no aprendizado dos saberes
técnicos, isso evidentemente gera consequências de método para a maneira como
se desenvolve a cultura universitária. Aulas são expositivas, entidades
estudantis são hierarquizadas, conhecimento e decisões são construídos
verticalmente.
Em
suma, observamos que opera, sobretudo nos cursos de medicina, um currículo
oculto, paralelo às grades oficiais. Através de entidades estudantis, em muitos
casos financiadas e vigiadas por antigos membros (agora formados, médicos,
professores), perpetuam-se tradições incontestáveis e arquiteturas sociais
permeáveis ao assédio e a violência sistemática. A abrangência das
consequências é incalculável, mas não por isso menos palpável, como indicam os
inúmeros casos de estupro e de sequelas devido a trotes.
A
construção da cultura do trote e de seus fundamentos (hierarquia, ufanismo,
violência coletiva) confere homogeneidade aos grupos universitários e conforma
unidade corporativa avessa a contestação. Em outras palavras, a submissão
performática do trote não tem fim no trote em si, mas esbanja sua continuidade
na construção de uma postura passiva dos estudantes, que se inserem numa
dinâmica social de saúde mercantilizada, não enquanto agentes transformadores,
mas como operadores diante de uma ordem social adoecedora.
É
importante ressaltar que o trote constitui uma cultura exclusiva. Aqueles que
se recusam a aceitar os rituais ou enfrentam os grupos trotistas são, então,
perseguidos pelo bloco hegemônico. A CPI das Universidades deixou evidente
tanto a falta de instituições que acolhessem as denúncias, quanto a dificuldade
de garantir a proteção dos denunciantes, em muitos casos ameaçados por
professores, vítimas de agressões físicas etc.
Quebrar
com a cultura do trote e com sua ritualística significa, além de defender
vítimas de violações de direitos humanos e apurar denúncias, afirmar com
categoria que a universidade é espaço de construção coletiva e, portanto,
apenas um ideário democrático pode formar práticas, concepções e profissionais
empenhados na saúde da população.
Notas:
[1]
– “Escola de tradição, grande sem comparação. Nos esportes soberana, na ciência
sem igual” – trecho de música do Show Medicina, fraternidade da FMUSP
denunciada em escândalos de prostituição e violência
[2]
– É bem elucidadivo o conceito freudiano de narcisismo das pequenas diferenças,
que explica a atitude muito frequentemente hostil das atléticas para com seus
supostos inimigos, num claro mecanismo psicológico de inferiorização do
agrupamento rival a fim de elevar-se a patamares superiores
3]
– “Buceta, buceta, buceta eu como a seco. No cu, eu passo cuspe. Medicina,
medicina é só na USP!” ou “Eu tava no banheiro comendo a empregada, o índio
abriu a porta e eu comi a bunda errada”– cantos da AAAOC (Associação Atlética
Acadêmica Osvaldo Cruz da FMUSP), sendo “índio” um termo usado pra se referir
aos estudantes de outra faculdade (Escola Paulista de Medicina)
Fonte:
redebrasilatual
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