"Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer.
Ninguém sabe que você está aqui.
Você vai virar um ‘presunto’ e ninguém
vai saber", era uma das ameaças ouvidas de um agente público no
período em que esteve presa”
O relaatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV),
divulgado na quarta-feira, detalhou como
a tortura era praticada por agentes públicos durante o período militar. As
informações contidas nos depoimentos dão uma noção mais clara dos requintes de
crueldade sem poupar nem mesmo mulheres, adolescentes ou inocentes presos de
forma clandestina e sem qualquer direito básico a defesa, algo injustificável
mesmo por aqueles que pregam a volta dos militares como se vê em algumas
manifestações ou se ouve de alguns parlamentares.
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Naquela época, a presidente Dilma Rousseff era uma das
líderes de uma organização chamada Vanguarda Armada Revolucionária Palmares
(VAR-Palmares). Ela foi presa em janeiro de 1970, pela Operação Bandeirante.
Assim como outros opositores do regime militar, Dilma foi torturada e até hoje
alega sofrer com sequelas físicas e psicológicas.
No relato que fez à Comissão Estadual de indenização às
Vítimas de Tortura de Minas Gerais, em 2001, Dilma conta como teve um dente
arrancado a socos, sobre as sessões de tortura (algo que parecia ser uma praxe
entre os presos interrogados), sobre ser amarrada em um pau de arara e sobre os
choques.
Relatório elaborado pela Comissão Nacional da Verdade
Foto: Reprodução
“Eu vou esquecer a mão em você. Você vai ficar deformada e
ninguém vai te querer. Ninguém sabe que você está aqui. Você vai virar um
‘presunto’ e ninguém vai saber”, era uma das ameaças ouvidas de um agente
público no período em que esteve presa. “Tinha muito esquema de tortura
psicológica, ameaças (...) Você fica aqui pensando ‘daqui a pouco eu volto e
vamos começar uma sessão de tortura’”, contou Dilma.
Dilma foi levada para a Operação Bandeirante no começo de
1970, em Minas Gerais. “Era aquele negócio meio terreno baldio, não tinha nem
muro direito. Eu entrei no pátio da Operação Bandeirante e começaram a gritar:
'Mata!', 'Tira a roupa', 'Terrorista','Filha da puta', 'Deve ter matado gente'.
E lembro também perfeitamente que me botaram numa cela. Muito estranho. Uma
porção de mulheres. Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu
nome verdadeiro. Ela disse: 'Xi, você está ferrada'. Foi o meu primeiro contato
com o 'esperar'. A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para
apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada. E foi. Também estou lembrando
muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque vai formando crosta de
sangue, sujeira, você fica com um cheiro”, relata.
Oficialmente, a tortura sempre foi negada pelos militares.
De acordo com o relatório da CNV, era uma prática instituída dentro do regime
militar, inclusive com premiação de torturadores com a Medalha do Pacificador.
No caso de Dilma, o principal responsável pela tortura era o
capitão Benoni de Arruda Albernaz. "Quem mandava era o Albernaz, quem
interrogava era o Albernaz. O Albernaz batia e dava soco. Ele dava muito soco
nas pessoas. Ele começava a te interrogar, se não gostasse das respostas, ele
te dava soco. Depois da palmatória, eu fui pro pau de arara”, conta. Albernaz
era o chefe da equipe A de interrogatório preliminar da Oban quando Dilma foi
presa, em janeiro de 1970.
Presidente Dilma Rousseff ao receber o relatório da Comissão
Nacional da Verdade
Foto: Roberto Stuckert Filho / Presidência da República
Dente arrancado a socos
Um dos pontos mais gráficos nos trechos do depoimento de
Dilma contidos no relatório fala sobre o episódio no qual teve um dente
arrancado a socos, que lhe acarretou sequelas até os dias atuais. “Uma das
coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi
derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me
causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um
soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em
gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o
Albernaz completou o serviço com um soco arrancando o dente”, conta Dilma.
Mas para estas pessoas, a principal memória dos dias em que
foram submetidos a práticas desumanas e quase medievais de tortura, em pleno
século 20, são as sequelas que perpetuam até hoje em suas vidas.
“Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente
sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o fato
de sermos mais novos, agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto é
muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é
jovem, fisicamente, mas a médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos
mais jovens. Quando se tem 20 anos o efeito é mais profundo, no entanto, é mais
fácil aguentar no imediato.
Fiquei presa três anos. O estresse é feroz, inimaginável.
Descobri, pela primeira vez que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão.
Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o
resto da vida.
Quando eu tinha hemorragia - na primeira vez foi na Oban -
pegaram um cara que disseram ser do Corpo de Bombeiros. Foi uma hemorragia de
útero. Me deram uma injeção e disseram para não me bater naquele dia. Em Minas
Gerais, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido
e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros
disso até o final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital de
Clínicas.
As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim”, relatou
Dilma.
Lendo relatos como esse, seja da presidente ou de qualquer
outra pessoa que esteve custodiada pelos militares naquela época, fica claro
que, independente da orientação política ou do que cada um acredita, uma
sociedade civilizada não deveria compactuar ou esquecer da selvageria que foi
praticada naquela época e que se perpetua até hoje, de forma arbitrária, entre
as camadas mais pobres, talvez como resquícios daqueles tempos.
Fonte: terra
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