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Salah
H. Khaled Jr.
Professor
Você
não leu errado. Criminalização da advocacia é exatamente o nome apropriado para
descrever o processo de destruição simbólica da figura do advogado que a grande
imprensa está conduzindo nos últimos meses. Certamente essa é uma surpreendente
novidade, ainda que condizente com o histórico das últimas décadas.
A
indústria que fabrica criminologia midiática prospera como nunca, apesar dos
inúmeros danos que provoca. Continua a experimentar uma hipertrofia
assustadora, que amplia seu poder para muito além dos limites do que seria
aceitável. Sua vocação para a produção de cadáveres é amplamente (re)conhecida:
contribui de forma decisiva para a disseminação
do ódio e comemora com entusiasmo práticas punitivas que flertam abertamente
com o fascismo.
Intencionalmente
ou não, essa máquina conspira contra a própria democracia. Sua formidável
aptidão para a destruição de indesejáveis é praticamente inigualável. Reduz
pessoas a estereótipos que refletem consolidadas imagens lombrosianas da
criminalidade e transforma processos em máquinas de confirmação de abjetas
expectativas de punitividade. Arruína de forma irrecuperável a possibilidade de
convívio social de quem tem o infortúnio de subitamente tornar-se cliente do
sistema penal e contribui abertamente para que essa clientela seja percebida
como anormal diante da suposta normalidade de um corpo social retratado como
homogêneo, ordeiro e obediente à moral.
Os
empreendedores morais que conduzem tais cruzadas são idolatrados por uma
parcela significativa da população, que consome uma criminalidade que é vendida
como produto e delira com uma criminalização que é da ordem do discurso, mas
que em muitos casos é a instância decisiva para a determinação do destino dos
eventuais acusados. Diante desse cenário, a surpreendente novidade é que a
máquina criminalizante recentemente desenvolveu uma inovação significativa: o
processo de reconstrução discursiva por ela promovido passou a se dedicar à
criminalização da advocacia.
Dito
de forma simples, costumamos pensar em criminalização como a criação e
aplicação da lei penal. Sob esse aspecto, poderíamos pensar em criminalização
primária e secundária e na seletividade social decorrente da impossibilidade de
funcionamento do programa criminalizante para além da mera abstração legal.
Evidentemente o que refiro como criminalização da advocacia não se enquadra
nessa definição: é necessária uma breve releitura do conceito para desvelar o
sentido da provocação, o que certamente não é algo inédito.
A
noção de criminalização foi recentemente ampliada no âmbito da chamada
criminologia cultural para abranger também a criminalização de produtos
culturais, criadores e consumidores. É comum que expressões culturais que não
se conformam aos vetores da estética dominante sejam satanizadas e
criminalizadas pela grande mídia. Rap, Heavy Metal, Funk, Histórias em
Quadrinhos, Games e inúmeras outras formas de arte foram sistematicamente
criminalizadas por um discurso que efetivamente substitui as expressões
originais por imagens supostamente dotadas de efeitos criminógenos. A opinião
publicada vende assim a ilusão de que a arte deve ser combatida e reacionários
culturais ventilam pânico moral como se fosse verdade acabada. O resultado do
processo pode ser definido com criminalização cultural, que se diferencia da
criminalização com sentido estritamente penal, ainda que porventura possa
conduzir a ela.
As
discussões acima referidas já estão consolidadas e integram uma significativa
tradição de abordagem criminológica do funcionamento da máquina de trituração
do outro que é o poder punitivo. Como também é amplamente (re)conhecido, o
poder punitivo é um agente de destruição do diferente. A dissociação entre
objeto de persecução e o restante da população é parte integrante de sua
lógica, uma vez que permite que a pessoa reconstruída como inimiga torne-se
objeto de aplicação de um aparato que emprega força com uma intensidade que de
outra forma não seria aceita. A brutalidade só é aceita porque é voltada contra
eles e não contra nós. Para isso é preciso difundir o discurso binário que opõe
a sociedade e seus inimigos, o que tem raízes históricas facilmente
identificáveis. O hostis, o herege, a bruxa, o homem delinquente e tantas
outras figuras demonizadas historicamente mostraram a sua serventia para a
logística que governa a agenda de um poder punitivo extremamente seletivo.
Estabelecidas
essas premissas, o que estamos testemunhando no Brasil nos últimos meses é um
fenômeno sem igual, salvo melhor juízo. Trata-se de um intenso processo de
destruição da imagem do advogado e de desidentificação de sua figura com a
sociedade. Ele é retratado como procurador "deles" e, logo, alguém
que está contra "nós". Nesse sentido, a insistência com que é
disseminada a imagem demonizada de advogados sugere que a noção de
criminalização pode comportar um acréscimo de sentido, uma vez que a
representação narrativa que caracteriza o esforço de destruição midiático
revela perante o "público" uma figura espúria, movida exclusivamente
por seus interesses particulares e de seus clientes. Contratado por criminosos,
ele também é de certo modo retratado como agente da criminalidade: conspira
para que a "impunidade" prevaleça, obstaculizando a expediente e
célere aplicação da justiça, ou seja, a imposição da pena. Por outro lado,
"agentes da lei" são retratados como paladinos da justiça que têm a
coragem de confrontar os "inimigos da sociedade". Pouco importa a
flagrante indistinção de funções e sobreposição de papéis entre investigadores,
acusadores e julgadores: o que importa é que todos colaboram para a empreitada
comum que é a derrocada de acusados e seus "advogados escusos" e
discursivamente criminalizados.
Os
manifestos que apontam as inúmeras ilegalidades perpetradas em nome do combate
aos inimigos eleitos são solenemente ignorados ou ironicamente rebatidos pela
maioria da grande imprensa. As denúncias de violações aos direitos fundamentais
dos acusados são interpretadas como mera retórica de advogados. O discurso é
vilipendiado e os signatários grosseiramente ridicularizados. Muitas vezes os
textos também são assinados por professores, promotores, defensores públicos e
juízes, mas isso não basta para que não sejam desclassificados como simples
manifestações de advogados em um processo específico e, logo, reflexo de seus "interesses
particulares". Os "contrapontos" empregados na cobertura
jornalística de processos produzem uma ilusão de pluralidade, mas o ponto de
vista dissidente da narrativa persecutória é rotineiramente contemplado de
forma menos significativa no texto. Trata-se de um consolidado expediente
jornalístico de produção de "verdade" pela grande mídia. Tudo isso
contribui para a fixação de uma imagem pejorativa da advocacia no imaginário
popular, o que pode ou não ser mero efeito colateral, mas inegavelmente produz
resultados devastadores, já que é feito de forma contínua e reiterada.
Parece
perceptível que um perigoso nó de forças converge para de forma sistemática
aviltar, desprestigiar e aniquilar a própria ideia de defesa, como se ela fosse
um obstáculo indesejável para a concretização de uma justiça que é identificada
com o poder punitivo. O resultado é visível: a própria advocacia é
criminalizada perante a "opinião pública", o que se assemelha ao que
referi anteriormente como criminalização cultural, ainda que com efeitos
possivelmente muito mais dramáticos. Para a consecução dessa detestável
finalidade, uma verdadeira máquina de desinformação é colocada em
funcionamento, como recentemente ocorreu com Nilo Batista. No entanto, é
importante enfatizar que a estratégia não consiste na simples tentativa de
destruição da reputação de um único advogado ou escritório de advocacia. A
escala é muito maior. Não é a simples retratação demonizada de um advogado
específico em um caso particularmente polêmico, ainda que renomados advogados
tenham experimentado o sabor amargo do veneno destilado pela criminologia
midiática: é a advocacia em si mesma que tem sido vítima de cruzadas morais da
grande mídia e até mesmo de entidades representativas de classe que movidas por
um impensado sentimento de solidariedade com pares, tratam os advogados como se
inimigos fossem.
Tudo
isso é extremamente preocupante, o que aparentemente escapa aos olhos de
espíritos menos sensíveis e adestrados pelo fascismo reinante. Pode existir
democracia sem possibilidade de resistência? Não exercem os advogados uma
função social indispensável, o que inclusive é expressamente definido pelo
próprio texto constitucional? A grandeza do advogado não consiste precisamente
na sua capacidade para resistir? Para resistir ao verdadeiro maremoto
punitivista irracional que se volta contra a liberdade do cidadão e com isso
efetivamente barrar a arbitrariedade, como se exige em um Estado Democrático de
Direito? Para garantir que a eventual punição não viole as regras do jogo? Não
tenho dúvida de que a imensa maioria das pessoas não discordaria, o que vale
inclusive para boa parte dos que veiculam o discurso criminalizante. Mas se é
assim, como explicar que tantas pessoas tenham sucumbido aos encantos do
fascismo reinante? Como explicar que possam diminuir de forma tão explícita a
figura essencial do advogado, quase como se lamentassem a sua própria
existência?
Creio
que uma possível explicação é fato das pessoas terem sucumbido ao ódio. O país
experimenta hoje uma cisão profunda. O embate político acirrou os ânimos de tal
modo que aparentemente tudo se tornou aceitável para promover a destruição do
adversário, que é visivelmente tido como inimigo. Não basta eventualmente
vencer. É preciso devastar. É preciso assassinar por completo o inimigo para
que não lhe reste nenhuma possibilidade de redenção. Não apenas o seu
patrimônio político como também a sua própria pessoa em si mesma e inclusive as
que lhe são de algum modo próximas. E para isso nenhum preço a pagar é alto demais.
É um utilitarismo desmedido, que despreza completamente a forma e considera
qualquer meio aceitável para a concretização do fim esperado. Um utilitarismo
que não mostra nenhuma espécie de restrição e não se importa com os destroços
que decorrem de sua passagem. Ele está arruinando vidas e instituições com
impressionante voracidade e velocidade. Pode arruinar a própria democracia.
Combater
a corrupção não pode equivaler a criminalizar a advocacia, o que potencialmente
inviabiliza a própria democracia, que está sendo corroída a cada dia por um
discurso assustadoramente sedutor. Creio que o que sustentei aqui não é
passível de desclassificação pelos habituais recursos ao paradigma
simplificador. Não exerço a advocacia. Tenho orgulho de pertencer aos quadros
da OAB/RS, mas sou apenas um professor e escritor que tem enorme simpatia pela
figura do advogado e amor pela democracia.
Estou
retornando em definitivo ao Justificando. Escrevo todas as sextas. Até a
próxima coluna. Um grande abraço e bom fim de semana!
Salah
H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em
História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal:
Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a
Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen
Juris, 2014 e e co-autor, com Alexandre Morais da Rosa, de In dubio pro hell:
profanando o sistema penal, Empório do Direito, 2015.
Fonte:
justificando
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