“A perversão começa na formação”, diz ex-PM condenado |
“A
perversão começa na formação”, diz ex-PM condenado. Rodrigo Nogueira, quase
dois metros de altura, mais de 100 quilos, condenado a 18 anos de prisão fala
sobre a cultura violenta da corporação, corrupção dos oficiais, revanchismo
entre policiais e criminosos e como aprendem a torturar
Ciro
Barros, Agência Pública
Com
quase dois metros de altura, mais de 100 quilos entre músculo e alguma gordura,
o ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Rodrigo Nogueira Batista, de
33 anos, é um “monstro” como a gíria popular classifica os brutamontes do
tamanho dele. A orelha esquerda estourada pelos tatames de jiu-jitsu e o nariz
meio torto ajudam a compor a figura do ex-PM preso em Bangu 6 (Penitenciária
Lemos de Brito). Essa prisão, destinada prioritariamente a ex-policiais,
bombeiros, agentes penitenciários e milicianos, faz parte do Complexo
Penitenciário de Bangu, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. Preso desde
novembro de 2009, Rodrigo foi condenado pela Justiça Militar a 18 anos por
furto qualificado, extorsão mediante sequestro e atentado violento ao pudor e a
12 anos e 8 meses no Tribunal do Júri por tentativa de homicídio triplamente
qualificado.
Segundo
a condenação judicial, Rodrigo e seu então parceiro, o cabo Marcelo Machado
Carneiro, abordaram a vendedora ambulante Helena Moreira na descida do Morro de
São Carlos, onde ela morava. Ela iria à estação de metrô Estácio, no bairro do
Estácio de Sá, Rio de Janeiro, e levava na bolsa R$ 1.750. Os policiais a
revistaram, roubaram a quantia em dinheiro e sequestraram Helena pensando que
ela fosse mulher de algum traficante. Segundo a decisão do juiz Jorge Luiz Le
Cocq D’Oliveira, os PMs mantiveram a vendedora sob cárcere privado por quatro
horas, onde ela foi agredida e “constrangida a praticar atos libidinosos” antes
de ser atingida por um tiro de fuzil no rosto, que teria sido disparado por
Rodrigo. Ainda segundo a sentença, a vítima se fingiu de morta após a sessão de
tortura e foi à delegacia dar queixa. Rodrigo recorreu da sentença no Superior
Tribunal de Justiça (STJ). Ele afirma não ter cometido o crime pelo qual foi
condenado, mas diz com todas as letras que “não é inocente”, cometeu “outros
erros” como policial, que ele não quer detalhar para não complicar sua
situação.
Ele
é autor do livro “Como Nascem os Monstros”, da Editora Topbooks, um brutal
“romance de não-ficção”, em que mistura suas próprias histórias às histórias de
outros colegas, casos de repercussão na crônica policial e “causos” da
corporação. No livro, Rodrigo descreve com consistência a transformação de um
jovem comum, com vagos ideais de defesa da sociedade e combate ao crime, em um
criminoso fardado que usa de sua posição para matar, sequestrar, extorquir e
prestar serviços à milícia. O resultado é um quadro aterrador de achaque de oficiais
aos recrutas, corrupção dos batalhões e uma ácida interpretação da visão da
sociedade em relação à polícia.
“Nenhum,
eu digo e afirmo, nenhum recruta sai do CFAP [Centro de Formação e
Aperfeiçoamento de Praças] pronto para empunhar uma arma no meio da rua”,
afirma categoricamente o ex-PM. Mas logo ele vai aprender que tem que pagar
para tirar férias, para ficar nos melhores postos da corporação e assistir aos
oficiais lucrando com a venda de policiamento. “No Morro dos Macacos, ninguém
entrava sem autorização do comando. Se um carro fosse roubado, e o bandido
fugisse com o veículo para o interior da comunidade, sorte dele (…). Acredite,
se um policial adentrar uma comunidade sem autorização do comando, não importa
o motivo, ele responderá por descumprimento de ordem. O morro que está
‘arregado’ não tem tiro nem morte, basta estar com o carnê em dia”, denuncia.
“Posso
garantir que, ao ingressar na corporação, ninguém acredita que um dia vai
sequestrar alguém, roubar seu dinheiro, matar essa pessoa e atear fogo ao
corpo. Pode até ter uma vontadezinha de atirar em algum bandido (…), mas pensar
em tamanha crueldade é impossível”, narra Rodrigo no livro. “Embaixo da casca
monstruosa que envolve esse tipo de criminoso, o policial militar que erra,
também havia (há?) um homem que um dia estudou, passou no concurso, se formou,
fez um juramento e marchava com garbo. Deu orgulho à sua família e, pelo menos
uma vez, arriscou morrer pela sociedade.”
Tenho
diante de mim um monstro: alguém condenado por um crime hediondo, mas, na
própria metáfora de Rodrigo, alguém que também é produto de mecanismos cruéis
de uma corporação cruel. Ligo o gravador. Essa é a versão dele.
Como
você entrou na Polícia Militar?
Entrei
na Marinha com 18 anos, fui aprendiz de marinheiro em Santa Catarina. Sempre
gostei muito da vida militar. Logo no começo eu já me desiludi com o
militarismo na Marinha. Eu sentia falta de realmente me sentir útil. Quando eu
tive que escolher uma especialização na Marinha, não consegui passar nos exames
para mergulhador. Sobraram algumas áreas bem ruins e aí resolvi fazer o curso
da polícia. Passei no primeiro concurso que eu fiz, pedi baixa da Marinha e
fiquei aguardando. No fim, eu fui pra polícia.
Mais
uma vez veio a desilusão. Assim que nós nos apresentamos lá no CFAP (Centro de
Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar), onde a maioria dos
praças são treinados. O CFAP deveria ser um centro de excelência, mas para você
ter uma ideia, no primeiro dia não teve nem almoço pros recrutas. No primeiro
dia tivemos só meio expediente e o comando já liberou todo mundo.
Você
conta no livro que ali começou uma degradação de um rapaz que tinha um ideal,
queria defender a sociedade, e começou a tomar contato com a violência e a
corrupção na corporação. Como foi isso pra você?
O
processo de perversão começa no início da formação. Quando cheguei no CFAP, o
primeiro contato quando a gente sai do campo para a companhia é um caminho
cercado por árvores. Do alto daquelas árvores, os policiais antigos começavam a
disparar tiros de festim e soltar bombas. O camarada que deveria ser treinado
desde o início pra policiar, já começa a ser apresentado a uma guerra. Dentro
do CFAP, a cultura dos instrutores não é formar policiais. É formar
combatentes. E aí é que tá o problema: você formar um combatente para trabalhar
numa coisa tão complexa quanto o aspecto social que ele vai ser inserido. Um
dia o policial tá trabalhando com um mendigo, no outro com um juiz, no outro
com um assassino, no outro com um estuprador. Para você preparar um combatente
para trabalhar nesse contexto, é muito delicado. Demora muito. Se isso não for
muito bem feito você acaba criando monstros.
As
instruções, as aulas que são ministradas no CFAP desde o início elas começam a
mudar o viés do camarada. A minha turma não teve nem aula de direito penal, não
teve aula de direito constitucional, não teve aula de filosofia, de sociologia.
A gente chegava na sala de aula, sentava, o instrutor falava meia dúzia de
anedotas da história da polícia militar e o resto é contando caso (matou
fulano, prendeu ciclano). Dentro do próprio ambiente ali, os outros oficiais
que coordenavam o curso só tinham um objetivo: deixar o cara aguerrido,
endurecido, fazer esse recrudescimento da moral do indivíduo para ele não
demonstrar piedade, covardia. Eles acreditam que se o camarada endurecer
bastante ele pode preservar a própria vida com isso. Mas isso é ruim: você cria
um cachorrinho bitolado que não consegue enxergar as coisas ao redor como elas
são.
Depois
de alguns meses no CFAP, o recruta vai estagiar e trabalhar com os antigos na
rua. Como na época era verão, existiam as chamadas Operações Verão. Eles
colocam o policial antigo armado e dois ou três “bolas-de-ferro”, como eles
chamam os recrutas, justamente por dificultar a movimentação do antigo.
Geralmente, os batalhões que recebem esse efetivo do CFAP são os litorâneos. Aí
a gente foi pro 31º, no Recreio, 23º, que é o Leblon, 19º, Botafogo, 2º,
Copacabana… Eu ficava um pouquinho em cada um.
No
período de praia, por exemplo, a gente chegava e o antigo ficava angustiado com
a nossa presença porque queria pegar o dinheiro do flanelinha, do cara que
vende mate, da padaria. Outro exemplo: uma das instruções que os oficiais davam
antes do efetivo sair pro policiamento era: “olha, vocês podem fazer o que
quiserem, pega o pivete, bate, quebra o cassetete, dá porrada no flanelinha. Só
não deixa ninguém filmar e nem tirar foto. O resto é com a gente. Cuidado em
quem vocês vão bater, com o que vocês vão fazer e tchau e benção”. A minha turma
partiu pro estágio com dois meses de CFAP, dois meses tendo meio expediente e
depois rua. E aí, meu camarada, a barbárie imperava: pivete roubando,
maconheiro… Quando caía na mão era só porrada e muito gás de pimenta. Foi ali
que eu tive contato com as técnicas de tortura que a Polícia Militar procede aí
em várias ocasiões. Você vê agora o caso do Amarildo. O modus operandi vai se
repetindo, evoluindo, até que toma uma proporção mundial. Eu conheci aqueles
recrutas que participaram do caso Amarildo lá no presídio da Polícia Militar e
eles foram formados depois do meu livro. O último parágrafo do meu livro diz
que os portões do presídio da polícia militar estarão sempre abertos para
receber cada novo monstro nascente. E que venha o próximo. E continuam nascendo
os monstros, um atrás do outro. Aqueles policiais que participaram do caso
Amarildo, pelo menos de acordo com o que o inquérito está investigando eles
estão fazendo as mesmas práticas que eu já fazia, que o meu recrutamento já
fazia, que outros fizeram bem antes de mim e que já vem de muitos anos. Vem de
uma cultura.
Como
um policial aprende a torturar?
É
no dia a dia mesmo. O nosso direito dificulta o trabalho do policial em certos
aspectos. Por exemplo, um pivete roubou uma coisa de um turista e correu. O
policial corre atrás do pivete e pega o pivete. Quando ele consegue chegar no
pivete, ele já jogou o que ele roubou fora e ele é menor de idade, não pode ser
encaminhado para a delegacia. Porra, mas o policial sabe que ele roubou. E aí
entra o revanchismo, a hora da vingança. Primeiro lugarzinho separado que tiver
(cabine, atrás de um prédio, dentro dos postos do guarda-vidas) é a hora da
válvula de escape. E eu posso assegurar para você: da minha turma do CFAP, de
dez que se formaram comigo, nove jamais pensaram que passariam por um processo
de desumanização tão grande. O camarada começa a ver um pivete levando choque,
spray de pimenta no ânus, no escroto, dentro da boca e não sente pena nenhuma.
Pelo contrário, ele ri, acha engraçado.
E
tem um motivo: se nesse momento que o mais antigo pegou o pivete e começa a
fazer isso, se você ficar sentido, comovido por aquela prática, pode ter
certeza que vai virar comédia no batalhão, vai ser tido como fraco. Vai ser
tido como inapto para o serviço policial. E aí você vai começar a ser
destacado, a ser visto como um elemento discordante desse ideal que a tropa
criou. Se eu tô com você, mas você não tem disposição pra bancar o que eu tô
fazendo com um vagabundo, na hora que der merda é você que vai roer a corda. Na
hora que o vagabundo me der tiro, você não vai ter peito pra meter tiro nele.
No fim, você vai ser afastado: vai ficar no rancho, na faxina ou em algum
baseamento a noite toda.
Você
vai formando e selecionando por esse critério. Se você é duro, você vai
trabalhar na patrulha, no GAT (Grupamento de Ações Táticas), na Patamo
(Patrulhamento Tático Móvel) … Agora você que é mais sensato, que não vai se
permitir determinadas coisas, não tem condições de você trabalhar nos serviços
mais importantes. Não tem como o camarada sentar no GAT se não estiver disposto
a matar ninguém. Não tem como. E não é matar só o cara que tá com a arma na mão
ali, é matar porque a guarnição chega a essa conclusão: “Não, aquele cara ali a
gente tem que matar.” Aí é cerol mesmo. Se você não estiver disposto a
participar disso aí, tu não vai sentar no GAT, não vai sentar numa patrulha
nunca.
No
livro, você descreve o constante clima de guerra e revanchismo entre policiais
e traficantes e conta a história do recruta Sampaio…
É
uma das partes verídicas do meu livro, fiz questão de chamar a atenção pra esse
caso do Sampaio. Quem sabe para a família também ler e sentir que alguém
lembrou dele. Esse caso foi muito sério… Foi pesado pra caraca… [Rodrigo
chora]. No livro eu coloco que o protagonista conhecia, mas não tinha muita
intimidade com o Sampaio. Eu particularmente conhecia bem o Sampaio. Um dia eu
cheguei para trabalhar no CFAP, tava de serviço na guarda. Era sexta-feira de
carnaval. Quando eu cheguei, já ouvi a notícia que o Sampaio tinha sido
assassinado com 19 tiros, lá em Caxias [Duque de Caxias, município da região
metropolitana do Rio]. O Sampaio era filho caçula de uma família relativamente
grande, tinha vários irmãos, a mãe dele era uma senhora bem velhinha. Era pra
ele estar de serviço comigo naquele dia. Ele ia todo dia pro CFAP de ônibus.
Naquele dia, ele ia de carona com um outro companheiro lá do CFAP. Ele tava ali
parado no ponto de ônibus, esperando o cara passar de carro e passaram alguns
bondes de vagabundos voltando do baile. Ele morava numa área onde tinha
traficantes, mas, como ele era recruta e cria da área, ele achou que teria uma
tolerância com a presença dele pelo menos até ele se formar e conseguir sair.
Ele tava no ponto às cinco da manhã, os vagabundos voltavam do baile e alguém o
reconheceu. Eles fizeram a volta e começaram a atirar nele ali. Ele correu,
correu muito, quase 800 metros. E foi cair lá perto de uma ruazinha de barro
com 19 tiros de calibre .380. Todos eles nas costas. Todos.
A
gente já chegou no CFAP com essa notícia próximo a nossa formatura. Aí pediram
voluntários para a guarda fúnebre e eu fui pro enterro dele. Foi uma
representação da polícia lá. E pô, bicho, ali eu vi como… [Rodrigo chora
novamente]. Se eu tava rachado, ali foi o ponto de quebra. Pô cara, ele tinha
19 anos. 19 anos…
Como
o clima de guerra entre criminosos e policiais influencia na formação do
policial no dia a dia?
Depois
que eu vi o Sampaio no caixão lá com flores até o pescoço, só a cara pra fora,
a família dele chorando… O comandante do CFAP nem quis ir ao enterro, nenhum
oficial foi. A kombi que a gente usou pra levar o corpo até o enterro, a gente
teve que empurrar porque não funcionava. Depois que eu vi esse descaso todo, eu
pensava: “porra, o Sampaio morreu. Tomou 19 tiros. Não é possível que vai ficar
por isso mesmo”. Não teve uma palestra de alguém pra conversar com a gente, não
teve um inquérito, não teve nada. Ninguém sabe até hoje quem deu 19 tiros num
recruta que estava desarmado. Ninguém sabe. Ali eu pensei: “se eu der mole, vai
ser um contra um e de caixão livre. Alguém vai ter que pagar, isso aqui não vai
ficar de graça não. Vou ter que escolher de que lado que eu tô.” E nós nos
formamos, e eu fui começar a trabalhar na rua.
Quando
eu cheguei no batalhão, eu não poderia trabalhar numa coisa que fosse muito
perigosa. Eles colocaram a gente num serviço de P.O, que é o Policiamento
Ostensivo a pé. Eu trabalhei muito na área da Tijuca. Naquela época não tinha
UPP ainda, não existia. Então a Tijuca, agora é menos, mas era uma região muito
complicada de se trabalhar pela quantidade de morros ao redor. Eu trabalhava na
rua 28 de setembro e no fim dessa rua era o Morro dos Macacos, que era o único
morro da facção criminosa ADA (Amigos dos Amigos) em uma área cercada pelo
Comando Vermelho. Era um morro muito forte, os bandidos eram muito aguerridos
no combate. Não tinham medo de matar polícia, de dar tiro em polícia. É uma
área onde passa muito ladrão, principalmente do Jacarezinho. Eles vinham de lá,
atravessavam o túnel Noel Rosa, roubavam na 28 de setembro e voltavam pro
Jacarezinho, mudavam de área de batalhão e era difícil de pegar. Ali, bicho,
meio dia eu já dei tiro nos outros ali em saidinha de banco. A primeira vez que
eu disparei a minha arma de fogo foi assim, meio dia e pouco, no Itaú da 28 de
setembro. Tinha acabado de assumir o serviço. A gente vinha de ônibus até a 28
de setembro, eu pus os pés na rua e um camarada apontou: “Tão roubando, tão
roubando”. Aí eu vi um cara saindo do banco e sentando na moto. Já puxei a
arma, falei pra ele parar, e o garupa se encolheu. Aí o motorista acelerou e eu
atirei. Só que eu errei e o cara escapou. Ali eu vi que o troço é de verdade,
que se der mole, fechar o olho, vai ser baleado. Aconteceu também quando o
Borrachinha foi baleado [episódio descrito no livro]. O Borrachinha tomou um
tiro de .380 no meio do olho, foi pro hospital. E não passava uma semana sem
que alguém próximo a mim tivesse levado um tiro. Policial que era baleado
quando tentavam assaltar…. Quando eu tava na patrulha todo dia tinha. Todo dia,
quando eu tava trabalhando na DPO, e com o rádio e eu escutava: “Prioridade,
prioridade. Assalto em tal rua” é porque algum vagabundo tinha dado tiro em
patrulha e tava correndo. O GAT quando entrava no Morro dos Macacos, eu tava
patrulhando em volta e só ficava escutando o pau roncando lá. E eu só ficava
pensando: “pô cara, eu tenho que ir pra lá, quero ir pra lá, quero dar
tiro”. E agora que eu tive tempo pra
parar e pensar eu fico vendo como isso é absurdo. É absurdo.
Eu
via essas coisas acontecerem. Rajada de fuzil uma da tarde nos Macacos, seis
horas da tarde o cara descarregando uma nove milímetros em cima da patrulha pra
poder fugir. Eu via isso acontecendo. Agora eu penso como isso é surreal, é uma
guerra. Essa banalização do confronto entre polícia e bandido é singular no Rio
de Janeiro.
O
criminoso aqui no Rio de Janeiro não tem receio de dar tiro no policial, nenhum
receio. Não tem receio de jogar uma granada em cima do policial que entra numa
favela. Tem noção do que é isso? Escutar uma granada explodindo e você saber
que é pra você? Bicho, isso deixa qualquer um pirado. Você tá passando com a
sua patrulha e de repente você escuta os tiros atrás. O cara fica louco. Bicho,
você dentro de um blindado, parece que você tá no Iraque ou na Síria cara.
Quando você embica de blindado dentro de um acesso à favela, é tiro batendo no
vidro, na lataria. Granada explodindo. Não tem como o cara não ficar louco.
Isso cria um stress no policial que tá ali direto, que fica difícil do policial
equacionar isso na cabeça dele. Você imagina uma escala de 24 horas por 72 de
descanso. Então o cara chega na segunda-feira, vai trabalhar. Entra no
blindado, bota colete, fuzil, carregador e vai pra favela. Troca tiro, leva
tiro, mata um, dois, vai pra delegacia levar a ocorrência. Vão pro batalhão.
Passa terça, quarta, quinta. Sexta-feira ele entra, vai pra favela de novo,
troca tiro de novo, mata mais um. Não tem como se conservar são.
O
monstro é uma metáfora desse processo de desumanização pelo qual o camarada
passa na lida diária do trabalho. Por mais que o cara ele tenha tendências
homicidas, seja violento, tenha caráter duvidoso antes de entrar na Polícia
Militar, quando ele entra isso tudo é potencializado. É a hora disso
extravasar. Essa lida contínua com situações de confronto, morte e violência
tem que ser encarada de maneira séria pelos gestores da Polícia Militar. A
gente tem que parar e pensar: a quem interessa deixar que esse bando de
alienados fique na rua matando e levando tiros. A quem interessa isso?
No
livro você também comenta sobre a participação dos oficiais nesse ciclo de
violência e corrupção e chega até mesmo a chamá-los de “chefes de quadrilha”.
Você diz que eles estão no comando disso tudo. Como isso acontece?
É
o coronelismo moderno. No militarismo, não tem como uma coisa seja ela boa ou
errada continuar sem a anuência de quem tá no comando. Se eu e você estamos na
patrulha e a gente começa a agir de uma maneira que está desagrando o comando,
ele vai tirar a gente da patrulha. Se eu e você estamos na patrulha, trocando
tiros, matando gente e a gente continua na patrulha, é porque o comando quer
que a gente continue. Dentro da estrutura da Polícia Militar, o coronel, o
comandante do batalhão é que coordena todo esse esquema que mantém a área do
batalhão em funcionamento. Toda área de batalhão no Rio de Janeiro tem ponto de
táxi, tem clínica de aborto, tem tráfico de drogas, tem oficina de desmanche,
tem jogo do bicho. Essas atividades só podem ocorrer enquanto o policial não
vai lá e manda parar. Por que o policial não vai lá pra impedir? Porque ele tem
determinação pra não ir. Posso garantir pra você que qualquer policial do Rio
de Janeiro que fechar uma banca de bicho na área do batalhão dele, no outro dia
ele tá em outro batalhão. Isso se não estiver em outra cidade. E ainda pega
fama de “rebelde”, de “problemático”.
Há
algum tempo teve uma comoção muito grande por conta de uma menina que foi fazer
um aborto e faleceu, a Jandira. Todo mundo sabia onde era aquela clínica de
aborto. Por que aquela clínica não foi fechada? Se a patrulha for lá e fechar a
clínica de aborto, o coronel vai querer saber porque fechou a clínica. “Ah,
teve reclamação”. Ok, mas a clínica manda dinheiro pro batalhão pra continuar
funcionando. Se o policial se meter nesse esquema, ele vai sofrer algum tipo de
consequência. Não é consequência de morte, violência, não. É consequência
administrativa. Vai ser encostado de alguma forma e daqui uma semana a clínica
vai estar funcionando de novo, pode ter certeza.
Rodrigo Nogueira chora ao falar de Sampaio, recruta que foi morto aos 19 anos. Foto: Bel Pedrosa. (Imagem: Agência Pública) |
No
batalhão, você tem a administração da lavradura militar e tem as companhias. O
comandante da companhia é quem vai definir que tipo de serviço existe dentro
das companhias (se o cara vai trabalhar na patrulha, na Patamo, nas cabines…) A
patrulha é considerada um serviço bom. Te deixa móvel, você consegue se
movimentar bastante dentro da área do batalhão e tem possibilidade de ganhos.
Você pode extorquir o usuário de drogas, você pode pegar um ladrão, tomar a
arma dele e ficar com o dinheiro dele e vender a arma. É diferente do serviço
baseado, que você tem que ficar parado no mesmo lugar o dia todo. Pra você
trabalhar nessa patrulha, você tem que ser indicado pelo comandante de
companhia, pois é ele quem determina onde cada um vai ficar. Você foi indicado,
beleza, vai trabalhar na patrulha. Pra você se manter na patrulha, você vai ter
que dar alguma coisa pro comandante de companhia. Porque tem alguém atrás de
você que tá querendo ir pra patrulha também. Na minha época, todo mundo que
trabalhava na patrulha pagava cem reais por mês pra continuar na patrulha. Cem
meu e cem do comandante da patrulha. Toda sexta-feira à noite, o comandante da
companhia pegava duzentos reais de cada patrulha, de quem tava de serviço à
noite. Isso da patrulha. Mas ele também pega de quem tá trabalhando num
subsetor, também pega 200 reais do cara que tava na cabine, mais um dinheiro do
camarada que trabalha no trânsito. Quando você vai ver no final do mês, esse
pedagiozinho dá uma soma boa pro comandante de companhia.
Se
o cara que tá no serviço, por exemplo, a patrulha, não quiser pagar, OK. Ele só
não vai ficar na patrulha, vai ser deslocado pra outro serviço. Esse pedágio é
uma forma do comandante receber um dinheiro e se blindar. Ele não precisa
disputar na rua o dinheiro que ele vai receber, ele recebe dentro do batalhão.
É um tipo de achaque e corrupção muito difícil de ser descoberto porque um
policial dificilmente vai dizer que o comandante tá extorquindo ele.
Dificilmente vai dizer, dificilmente vai conseguir provar e vai sobrar pra ele.
Por
que dificilmente ele vai dizer?
Porque
se ele falar pro comandante do batalhão que o comandante da companhia tá
pedindo cem reais pra ele continuar na patrulha, a primeira coisa que o
comandante do batalhão vai dizer é: “você não tá mais na patrulha”. Ele pode
tentar produzir provas, colocar uma câmera escondida, tentar ir mais a fundo.
Mas aí, meu camarada, ele tá assinando a própria sentença de morte. Aí você tá
querendo prejudicar o comandante da companhia, tá querendo prender o cara.
Entre a própria tropa é visto como ofensivo, como uma coisa péssima. Isso não
vai acontecer nunca.
Esse
é só mais um exemplo. Quer outro? Pra você tirar férias, você tem que pagar o
sargenteante. Olha que absurdo. Esse dinheiro é dividido entre o sargenteante,
que é um sargento, e o capitão que é comandante de companhia. Isso tá no filme
lá, no Tropa de Elite, não é mais novidade pra ninguém. Mas não para por aí
não. Se você não quer mais trabalhar, você pode chegar no oficial e falar que
não quer mais trabalhar. Ele vai falar: “Ok, todo mês o seu salário fica pra
mim”. Aí o sargenteante te coloca numa escala fantasma. Ou seja, você não existe
mais no batalhão. Você não precisa mais colocar os pés no batalhão. Isso é bom
pro cara que trabalha na milícia, no jogo do bicho. O camarada que, por
exemplo, tá trabalhando na banca do jogo do bicho. Recebe lá cinco mil por
semana pra trabalhar no jogo do bicho. Ir pro batalhão pra ele é ruim porque
ele perde o dia de trabalho dele no bicho. Então ele pega o salário dele de
dois mil reais, deposita na conta do comandante de companhia e não aparece mais
no batalhão. Fica só trabalhando no jogo do bicho. Pra ele é mais jogo, porque
ele não precisa mais se expor, não precisa botar farda, ter horário, fazer a
barba. O interessante pra ele é a carteira de policial e o porte da arma. Isso
é muito comum, é fácil de se constatar. Qualquer promotor de justiça que chegar
no batalhão de surpresa e disser: “bom dia, eu quero o efetivo do batalhão e a
escala de serviço”. Ele vai encontrar, no mínimo, cinco, seis fantasmas. Em
qualquer batalhão do Rio de Janeiro. Isso é batata.
Esses
esquemas todos nos batalhões da Polícia Militar são muito antigos. Eles fazem
parte de uma cultura da polícia. Acabar com esses esquemas todos vai demandar
uma coisa muito complicada, que seria tirar o poder das mãos dos coronéis.
Por
isso você defende a desmilitarização?
É
um primeiro passo. Quando você vê um soldado policiando, alguma coisa já tá
errada. Ou o camarada é soldado, ou é policial. Ele pode até ser um soldado
policial dentro do quartel, mas não na rua. O soldado tem uma premissa que é o
quê? Matar o inimigo. O soldado é formado para eliminar o inimigo e o policial
não, pelo menos não deveria. O policial, ao contrário do que se acredita em boa
parte da sociedade carioca, ele não foi feito pra matar ninguém. O policial não
tem inimigo. O camarada que hoje tá dando tiro no policial, ontem pode ter
estudado com ele, pode ter frequentado os mesmos lugares que ele. O criminoso é
resultado da nossa sociedade, do nosso contexto. O crime é um fato social e o
policial não pode enxergar o criminoso como um inimigo. Não é pra matá-lo.
Prendeu, leva pra lei tomar as providências dela. Mas o que se convencionou
acreditar é justamente o oposto.
O
coronel, os oficiais, acumulam muito poder em uma figura só. O coronel tem uma
área de influência enorme dentro do batalhão dele, ele determina muitas coisas.
E o soldado não pode questionar o coronel. O soldado não pode entrar na sala do
coronel e falar assim: “Coronel, por que eu não posso abordar aquela van pirata
que tá passando ali?” Porque isso já constitui uma transgressão disciplinar.
Desde o legalismo do militarismo, até as regras subjetivas que regem a relação
entre subordinados e superiores hierárquicos, tudo serve para impedir o
camarada de pensar. Ele não pode virar pro comandante e falar: “capitão, não
vou pra rua porque o colete tá vencido”. Não pode. Ele pode reclamar do colete,
mas não pode reclamar para o capitão que é quem resolveria. Quando você tira o
militarismo e coloca os profissionais de segurança em nível equivalente, se o
profissional de segurança questionar o coronel por que ele teve que voltar das
férias pra trabalhar, o coronel não vai poder responder: “você tá indo porque
eu quero. Porque eu tô determinando que você vá. E se você não for, vai ficar
preso à disposição”.
Você
vê que essa confusão de atribuições entre soldado e policial, elas não se
resolvem de maneira fácil. As coisas continuam acontecendo aos olhos de todo
mundo e ninguém faz nada. Por exemplo,
aquele pessoal que tava voltando de uma festa dentro do HB20 branco e que foram
perseguidos por uma patrulha. Não teve um estalinho, uma bombinha, nada que
viesse do HB20 pra patrulha e o cara deu 15 tiros de fuzil no carro, num carro
em fuga. Só poderia acontecer na cabeça de um soldado, na cabeça de um policial
não aconteceria nunca. Um policial iria correr atrás, cercar. Mas ele não ia
dar tiro em quem não tá dando tiro nele. Só na cabeça do soldado, que acha que
tá na guerra e acha que se não atirar primeiro vai levar tiro. O cara foi lá,
deu a sirene e o carro acelerou pra fugir da polícia. “Ah, é bandido, vou dar tiro”.
Podia ser alguém bêbado, podia estar todo mundo fazendo uma suruba dentro do
carro, podia ter uma cachaça no carro e o cara estar com medo de ser pego, o
cara podia não ter habilitação, o cara podia ser surdo… São milhões de coisas,
mas o cara não para pra analisar essas coisas porque ele não foi condicionado
pra pensar, a contextualizar o tipo de serviço que ele tá fazendo. Ele foi
treinado pra quê? Acelerou, correu, bala!
Aquelas
crianças que tavam brincando na rua, filmando, um correu atrás do outro. Daqui
a pouco é tiro pra todo lado e o garoto caiu agonizando. Sabe por que? Preto e
pobre correndo na favela é bala. Depois a gente vê o que é. Foi o soldado
sobrepujando o policial de novo. Ele tava entrando num território conflagrado.
Ele entrou lá pra prender ou pra matar? Pra matar, pô. Se ele tivesse entrado
pra prender, a primeira coisa que ele ia fazer quando viu o menino correndo era
gritar pra ele parar.
A
nossa sociedade carioca, principalmente da região metropolitana, criou, até por
sofrer muito com os assaltos e tudo mais, um pensamento torto. Quando um
policial vai lá e mata um bandido, a sociedade faz o quê? Aplaude. Toda vez que
o policial entra em confronto, mata um cara que tava fazendo o arrastão a
sociedade aplaude e estimula. Só que o policial militar tem que entender que
quando ele errar a sociedade não vai aplaudir não. A sociedade vai sentar pra
formar o tribunal do júri e vai condená-lo sem a menor vergonha. Mas ao mesmo
tempo, criou-se essa cultura de que o policial tem que matar.
Tem
uma frase sua no livro que até vai nesse sentido, quando você escreve: “O PM só
vale o mal que ele pode causar”. Como é que o PM enxerga essa hipocrisia da
sociedade que às vezes exige o policial e às vezes o monstro?
Se
o PM andar com uma roupa humilde, pegar ônibus pra trabalhar, se ele não andar
demonstrando que tá armado, ele vai ser encarado por aquelas pessoas que o
conhecem como um policial bobão que não faz mal pra ninguém. Agora, se ele tá
dentro de um Fusion, com uma pistola enorme na cintura, com roupa de marca,
cordão de ouro no pescoço e mete a porrada em quem tá fazendo merda perto da
casa dele. Se ele se torna algo que realmente traz risco, ele se torna
valorizado. “Ih, pô, não mexe com o fulano não. Ele é polícia”. Há uma
glamourização desse estado desumanizado. A sociedade valoriza mais o monstro do
que o policial e é por isso que ele tá nascendo o tempo todo.
As
nossas próprias autoridades políticas valorizam a criação dos monstros, mas tem
que ter alguém pra eu apontar o dedo na hora que tiver dando merda. As
autoridades querem que existam monstros e tem vários exemplos disso. Você
lembra do caso do Matemático, que foi perseguido pelo helicóptero? O camarada
de helicóptero com uma M60, atirando em um carro em fuga que não deu um tiro nele.
Enquanto isso, a esteira de tiros batendo nos muros das casas, nos carros
estacionados, em tudo que é lugar. Aquilo ali é o exemplo da hipocrisia e de
como as nossas autoridades são parciais. Se fosse uma Patamo fazendo isso, os
policiais iriam todos presos. Mas como foi o helicóptero, tá tudo tranquilo.
Agora, me diz a diferença entre o cara do helicóptero e os caras do HB20? Não
tem diferença nenhuma. Mas o tratamento foi bem diferente. “Ah, aquele PM ali
que atirou no carro em fuga, errou. Mas o cara do helicóptero, não, vamos
proteger ele porque alguém tem que fazer esse tipo de merda.”
O
Estado quer que alguns profissionais façam sim esse tipo de serviço sujo. Como
fizeram com o Matemático, como fizeram com o Bem-te-vi na Rocinha, mas sempre
que a coisa começa a chamar muita atenção, eles entregam alguns pra serem
açoitados. E com isso a gente vai empurrando. E não enfrentamos nenhum
problema.
O
seu livro chegou a ser proibido no BEP (Batalhão Especial Prisional, prisão
para policiais militares).
A
Polícia Militar não gostou do livro, tanto que ele foi censurado. Eu me
ressinto um pouco de não ter previsto isso. Eu até imaginava que teria algum
tipo de represália. Depois de escrever o livro, eu pensei em segurar ele e
lançar quando eu saísse da prisão. Mas as coisas não se resolveram, eu já tava
com o livro pronto, a editora tinha gostado e tava querendo publicar. Aí eu
lancei o livro enquanto ainda tava no presídio da Polícia Militar. Foi a pior
coisa que eu fiz. Escrever um livro falando mal da Polícia Militar dentro do
presídio da Polícia Militar, que que tu imagina que pode ter acontecido?
Cara,
quando o livro foi lançado, minha esposa levou 30 exemplares pra distribuir lá
no BEP, pra alguns amigos. Eu ia dar pra rapaziada que sabia que eu tinha escrito
o livro e queria ler. Quando ela chegou, não deixaram ela entrar com o livro.
“Ah, mas por que não pode entrar com o livro?” “Ordem do comando, não pode
entrar com esse livro no presídio.” Minha esposa ficou nervosa e foi lá no
plantão do Ministério Público no centro do Rio pra contar o que aconteceu, que
o livro foi censurado. Ela contou que o Elite da Tropa, por exemplo, pode
entrar, o livro que o capitão escreveu. Mas o livro que o ex-soldado escreveu
não pode. Aí ela foi e relatou isso lá pro Ministério Público e depois de
alguns dias o MP oficiou o comando da Polícia Militar solicitando informações
sobre o porque da censura prévia. O comando deu lá as explicações dele.
Dois
dias depois, de madrugada, aconteceu. Entraram quatro policiais, pelo que eu
pude perceber, na minha cela, todo mundo com roupa do BOPE, touca ninja, sem
identificação. Entraram na minha cela, me acordaram e eu fui pro saco, tomei
choque. Saco e choque pra caramba. E eles falaram: “Manda lá a tua esposa
retirar a denúncia do Ministério Público, se não tu vai amanhecer suicidado
aqui dentro. Na próxima vez que a gente voltar, vai ser pra você se suicidar,
entendeu bem?”. Como não entender um recado desse? A minha esposa não foi mais
lá, retirou a denúncia e o assunto morreu, ficou por isso mesmo. Eu falei com a
minha advogada e ela foi, procurou gente pra denunciar, mas ninguém quis ouvir.
O
Comando da Polícia Militar se doeu mesmo comigo, tomou como uma coisa pessoal
que poderia trazer algum tipo de incômodo pra eles lá em cima. É impressionante
como ainda hoje você incomoda se você falar o que você pensa, se você falar a
verdade.
Teve
uma livraria, uma rede de varejo que, por conta do lançamento do livro, queria
fazer uma noite de lançamento. Eles queriam fazer o lançamento do livro,
falaram com a minha editora e tudo mais. A Justiça autorizou a minha ida até a
livraria pra poder fazer a noite de lançamento. Só que, no despacho, o juiz
determinou que ficava a critério da Polícia Militar providenciar a escolta pra
que eu fosse até o local de lançamento no dia tal, hora tal, pra fazer o
lançamento do livro. Só que no dia, a escolta não pode me levar porque ficou
empenhada em outra atividade. Ou seja, o comandante providenciou a escolta, mas
no dia disse que não tinha escolta pra me levar. A tentativa era essa, de
calar, de evitar que eu falasse.
Em
que ponto se perde o policial e se ganha o monstro?
São
vários pontos de quebra. Pra mim foi a morte do Sampaio. Quando eu vi o Sampaio
morto, um recruta de 19 anos morto com 19 tiros pelas costas. Ali eu falei: “É
guerra e se alguém atentar contra minha vida, eu vou tacar bala também”. Ali
foi que eu percebi a crueza da morte. Essa lida diária com a violência
constante é que causa a desumanização. Com a corrupção também, mas ela se torna
parte do processo da violência. Porque pra você conseguir pegar o arrego do
traficante, você tem que subir o morro e dar tiro nele. Se não o traficante não
vai te pagar nada. Traficante não paga pra quem tá baseado na entrada do morro,
porque quem tá baseado na entrada do morro não atrapalha o movimento da boca.
Essa desumanização vem primeiro com a violência, depois vem com os benefícios
pecuniários que você pode ter quando os outros querem evitar a violência.
Primeiro eu vou lá, entro no morro, entupo o traficante de bala. Vai descer um,
dois, três mortos. Na semana que vem o traficante vai pagar pra não descer mais
três mortos. A corrupção é consequência desse estado de violência que o
policial tá sujeito o tempo todo. O policial militar tá o tempo todo oprimido:
na folga dele ele tá oprimido, tem receio de ser reconhecido, assassinado. Pra
mim esse ponto de quebra foi perceber que eu estava no meio de uma guerra de
verdade. E como o Sampaio, depois vi muitos outros amigos morrendo, fui a
muitos enterros, funerais. Mas aí eu já estava mais recrudescido. Tem outro
caso que eu conto é o de dois policiais assassinados numa cabine, no Andaraí, o
sargento Marco Aurélio e o cabo Peterson. Eles chegaram pra trabalhar, de manhã
cedo, e lá na cabine Caçapava o vagabundo matou os dois de .45. O cara fugiu
sem levar nada. Cheguei lá pra ver e tava o sargento Marco Aurélio sem a parte de
cima da cabeça e o Peterson tava todo cheio de tiros no tórax.
Muita
gente da minha turma morreu, tá presa, foi excluída. E a fábrica de monstros tá
aberta, continua lá. Eles vão preenchendo. Sempre tem gente querendo entrar por
causa dessa glamourização do monstro. Todo concurso da PM é 100 mil inscritos,
80 mil inscritos. É muita gente, pô. A relação candidato/vaga é paralela a
vários cursos aí da UERJ. A fábrica tá aberta e muita gente quer entrar nela,
mas a gente vê que tá tudo errado.
Fonte:
pragmatismopolitico
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